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O Resgate do Soldado Ryan/Saving Private Ryan
Realizado por Steven Spielberg
EUA, 1998 Cor - 170 min.
Com: Tom Hanks, Tom Sizemore, Edward Burns, Barry Pepper, Adam Goldberg, Vin Diesel, Giovanni Ribisi, Jeremy Davies, Matt Damon, Ted Danson, Paul Giamatti, Dennis Farina, Joerg Staedler

Depois do desembarque na praia de Omaha, na costa Francesa, em 6 de Junho de 1944 (Dia D), onde perde a maioria dos seus homens, o Capitão Miller (Hanks) recebe uma missão fora do comum: procurar o soldado James Ryan para que este seja enviado são e salvo para casa. Motivo: a mãe de Ryan recebe no mesmo dia a notícia de que três dos seus filhos foram mortos em combate e os altos poderes militares não querem o nome do último Ryan inscrito num novo telegrama oficial de pêsames. Miller parte em busca de Ryan – que pode estar morto – , para lá das linhas inimigas, levando sete homens: o Sargento Horvarth (Sizemore), os soldados Reiben (Burns), Jackson (Peper), Mellish (Goldberg), Caparzo (Diesel) o médico Wade (Ribisi) e um intérprete de francês e alemão, o Cabo Upham (Davies).

«O Resgate do Soldado Ryan» estreia em Portugal com lotações esgotadas, seguindo o sucesso de público e de crítica nos países onde está a ser exibido desde Julho. Sem dúvida, nada que se possa comparar com o anterior «Amistad» (1997), o que prova que Spielberg pode abanar mas não cai. É sempre um pouco preocupante, no meio de intenso debate, que se fale mais sobre a mensagem ou sobre a fidelidade histórica de determinado filme, colocando-o à margem dos outros, que, por se limitarem a contar histórias "ficcionadas" e "irrealistas", nunca conseguirão – desgraçados – almejar a essa categoria superior do "filme importante". Neste filme a fidelidade histórica não é central à narrativa, uma vez que para lá das datas do desembarque que precedeu a queda do IIIº Reich, estamos perante uma história de ficção, saída da imaginação do argumentista Robert Rodat, cujo crédito prévio mais relevante foi co-escrever «Fly Away Home» (1996), com Jeff Daniels, Anna Paquin e uma data de gansos.

O que impressiona – já toda a gente o sabe por esta altura, devido aos destaques em todos os jornais diários e semanários do Planeta Terra, bem como em revistas de TV, "sociais" ou de cultura da beterraba – é a forma crua e, bom, realista, como é mostrada a guerra, não se poupando como habitual os "créditos" que, acumulados, levariam a uma classificação de filme "para adultos" nos EUA, o que aliás o próprio realizador afirmou ser adequado, porque "a guerra é X-Rated". A verdade é que muito "realismo" é sacrificado em muitos filmes, porque a acumulação de "créditos" dá direito a uma classificação diferente da qual muitos realizadores estão pura e simplesmente obrigados por contrato. O mérito do "realismo" de «Saving Private Ryan» não se pode confinar ao sangue e às tripas e aos membros a voar pelo écran, mostrados com maior intensidade na cena do desembarque na Normandia, mas à quase perfeição técnica com que as cenas são filmadas, por mérito do cinematógrafo Janusz Kaminski e do consultor militar Dale Dye (que tem um cameo no filme e se mostrou satisfeito em poder mostrar aos jovens americanos como são as coisas no campo de batalha, para que saibam… o que podem esperar da próxima guerra), e de – obviamente – Steven Spielberg.

O filme tem um aspecto visual semelhante às imagens recolhidas durante a Segunda Guerra Mundial (existem muitos metros de filme a cores, apesar da maior de parte de nós provavelmente visualizar essas imagens documentais a preto e branco), o que passou fundamentalmente pela redução da cor. Durante a sequência de Omaha, os planos pretendem ser do ponto de vista de um verdadeiro cameraman (ou de vários), com a câmara a afundar-se dentro de água ("afogando" o som), a tremer, a cair ou a salpicar-se de água, areia e sangue. O operador caminha baixo e abriga-se dos tiros, e até se atira ao chão antes da explosão de um morteiro, mas esta técnica não é usada de forma 100% consistente, mesmo durante a dita sequência. O resto do filme, mantém o mesmo aspecto, mas o cameraman-participante já lá não está. Os puristas exaltar-se-ão perante a menção de «Holocausto Canibal» (1979) ou «C'Est Arrivez Prés de Chez Vous» (1992), mas não pode deixar de se pensar em como resultaria o filme se Spielberg tivesse optado por integrar mesmo um personagem cameraman, repórter de guerra, sendo rigorosamente fiel a um pondo de vista "real" num maior número de cenas.

[A sequência da praia de Omaha é referida com tendo 20, 25 ou 30 minutos, mas não desesperem. Alguém tinha de vir assegurar-vos da duração certa do segmento mais sangrento e mais citado: 22 minutos, desde o primeiro tiro até ao fim do travelling sobre a matança. Se estiver a ler o texto próximo de ver o filme em vídeo não nos chame mentirosos, porque o tempo será inferior. Vd. tempo PAL]

Ainda no âmbito técnico, apontam-se umas falhas menores a nível da montagem – que não seriam dignas de registo num filme sem pretensões tão perfeccionistas –, como quando se deixa por demasiado tempo a imagem de bonecos imóveis antes de explodirem, no meio de actores reais em movimento e preocupados em salvar a pele. Quanto ao som, a perfeição é absoluta; não só pela forma como contribui para integrar o espectador no meio dos tiroteios (com recurso constante à separação entre os canais de surround), como em momentos dramáticos, em que o mesmo é abafado (os momentos de apatia de Miller). Spielberg, sempre usou o som com grande perícia, principalmente desde «Jurassic Park» (1993), o primeiro filme a ser gravado em DTS e cujo sucesso muito contribuiu para a modernização de salas de cinema por todo o mundo.

«Saving Private Ryan» é emocionalmente forte no modo como retrata a guerra, e os personagens não são os anjinhos que poderíamos ver em outros filmes da Segunda Guerra Mundial. Não há uma linha moral definida, como é frequente no trabalho prévio de Spielberg e é de reconhecer um grande amadurecimento no tratamento de certos temas, até porque este conflito, ao contrário do Vietname por exemplo, sempre foi mais fácil de delimitar no campo moral; sempre foi mais fácil de estabelecer quem eram os maus e quem eram os bons. É discutível que o personagem mais importante, do ponto de vista dramático, seja o Cabo Upham e não seria difícil imaginar a sua voz off sobre o filme, sendo até interessante ouvir o que ele estava a sentir em momentos cruciais da acção e quais as suas conclusões sobre decisões morais contraditórias, "corrigindo" um acto "correcto" com um comportamento "errado", numa subversão da habitual moral e mecanismos de redenção dos filme de Hollywood. Não há que confundir todos actos dos personagens com aquilo que o filme quer "transmitir", mas o personagem e o desenlace dessa situação reforçam que nenhuma guerra se pode resumir aos bons a matarem os maus, mas o trabalho do soldado, previamente a julgamentos morais, é matar o soldado inimigo. Porque as guerras não se ganham morrendo pela pátria, mas fazendo o inimigo morrer pela pátria dele, parafraseando Patton.

O mesmo não se pode dizer sobre as sequências que abrem e encerram o filme, totalmente desajustadas do resto da obra e parecendo servir como uma espécie de viagem de regresso ao presente, longe das atrocidades vistas na tela, como modo de acalmar o espectador. Os créditos poderiam rolar sobre Edith Piaf – pondo de parte o score tão inóquo de John Williams –, sem o "regresso ao presente". Estes momentos finais são mais do que redundantes; são ridículos. Como se fosse preciso extrair uma lição moral universal em dois minutos, sem ligação com o que foi construído ao longo de 2 horas e 50 minutos, ao mesmo tempo procurando desesperadamente puxar pela lágrima do espectador mais sensível. E depois de «Schindler's List» (1993), Spielberg deveria evitar tal repetição formal, não nos resgatando do cenário repleto de cadáveres. «Saving Private Ryan» é um bom filme de género, e não era necessário tentar acrescentar uma moral, um laivo de emotividade ou uma pincelada de "épico" tão forçada (3 horas depois, 40 anos depois,…)

A forma como a violência é tratada, e a discussão entre violência "gratuita" e aquela que "serve o guião", é algo que pode ser suscitado pelas classificações etárias leves que SPR tem tido, mas isso ficará para outra ocasião. Por cá, tivemos um caso aparentemente inédito, com a Lusomundo a solicitar que a Comissão Classificadora de Espectáculos baixasse o "maiores de 16" para um "maiores de 12". Os portugueses não ligam muito às classificações, e as salas nem sempre as têm à vista, ou têm classificações diferentes junto à sala e debaixo do cartaz, por isso não podemos deixar de nos espantar. Para mais, o realizador sempre disse que este não era um filme para crianças. Daqui a algum tempo, quando SPR passar na TV, o filme poderá será precedido por informações estranhamente contraditórias - por um lado, um "maiores de 12 anos"; por outro, algo como "contém cenas chocantes", ou imensas bolinhas vermelhas nos quatro cantos do écran a chamarem a atenção para sexo ou violência eminentes.

A distribuidora deveria preocupar-se com coisas mais importantes, como a falta de legendagem do discurso do soldado alemão enquanto trespassa com uma lâmina o peito de um americano, pedindo-lhe que não resista, e dizendo que é mais fácil deixar-se ir. O tom do "assassino" é de lamentação, e o poder dramático da cena perde-se por falta de tradução (excepto se se perceber alemão, como é óbvio). Outro pormenor é a legendagem defeituosa, que impede uma projecção correcta do filme (1.85:1), com uma linha de texto sobre os "mattes" (marcas na câmara, "barras pretas", que deveriam ser tapadas no projector) (Vd. hard-matte, softe-matte e o apontamento sobre projecção defeituosa), os quais aparecem com muita frequência e chegam a quebrar a ilusão da continuidade de um plano em que a câmara se desloca de dentro de um edifício para a rua; como surge a irritante tira preta, quando se passa por detrás de uma coluna, revela-se que se trata de dois takes e não de um plano contínuo. O que irrita não é perceber que são dois planos colados, mas as quebras indesejadas em cenas contínuas. A piorar, no Monumental de Lisboa, onde não se consegue projectar a toda a altura do écran, temos momentos ocasionais em que o filme está cercado por tela branca por todos os lados. Uma verdadeira ilha cinematográfica.

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