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Demolidor – O Homem sem Medo/Daredevil
Realizado por Mark Steven Johnson
EUA, 2003 Cor – 103 min. Anamórfico.

Com: Ben Affleck, Jennifer Garner, Michael Clarke Duncan, Colin Farrell, Joe Pantoliano, Jon Favreau, David Keith, Scott Terra, Ellen Pompeo, Leland Orser

Poster Daredevil
Daredevil (Affleck) – ou Demolidor em português, numa adaptação que requeria qualquer coisa começada por 'd' –, estatela-se, esvaindo-se em sangue, no chão de uma igreja. Flashback para a sua juventude, quando o pai, Jack Murdock (Keith) regressa aos ringues para uma renovada carreira de pugilista. Murdock não quer cumprir as ordens dos gangsters que fixam os desafios e sofre as consequências. Matt (Terra), que entretanto cegou devido a um acidente com material radioactivo, desenvolve capacidades sobre-humanas que compensam enormemente a sua falta de visão, nomeadamente um sentido de sonar que forma imagens na sua mente a partir dos sons que o circundam. Em adulto, Matt torna-se advogado, partilhando um escritório com Franklyn Nelson (Favreau). Quando a justiça não consegue castigar os criminosos, depois de encerrado o expediente no escritório, o advogado veste-se de vermelho e perscruta as ruas escuras da cidade, para uma aplicação directa e eficaz da justiça.

Hoje em dia, não faz muito sentido dizer que determinado filme tem a dimensão de uma história de BD, uma vez que é mais fácil encontrar na 9ª Arte histórias com um nível de desenvolvimento e falta de concessões para uma qualquer audiência média, que resultam numa redução de argumento e diálogos a um nível básico “mim bom - tu mau - mim bater”, que raramente caracterizam o cinema comercial anglófono. O produto médio de Hollywood é mais simplista que muita banda desenhada e é deprimente que não seja só a partir de literatura que se reduz e simplifica um universo para o adaptar para um filme, pois até a adaptação de um jogo de computador tende a constituir uma simplificação. Isto parece sugerir que de entre os leitores da banda desenhada, consumidores de jogos de computador e espectadores de cinema, estes últimos são os menos predispostos para narrativas complexas. Ou aqueles que assim são considerados pelas pessoas que tomam as decisões. No fundo é uma questão de orçamentos; quanto mais milhões de dólares, maior o risco, maior a necessidade de jogar pelo seguro.

Duncan Farrell
Vilões carismáticos: Kingpin (Clarke Duncan ) e Bullseye (Farrell)
Nos últimos anos, assistimos a interessantes adaptações de histórias da BD, com destaque para os heróis da Marvel, «X-Men» (2000) e «Homem-Aranha» (2002), com aproximações diversas dos universos (com muito terreno comum) das respectivas personagens. Comum a estes exemplos é também o facto dos homens do leme serem conhecedores e fãs da banda desenhada que filmam. Tal como Bryan Singer e Sam Raimi, Mark Steven Johnson, que escreve e dirige «Daredevil», é um entusiasta dos comics. Infelizmente não tem a mesma capacidade para assimilar o essencial das personagens e criar um filme de acção onde permaneça ainda alguma dimensão humana, por detrás das máscaras.

«Demolidor» poderia ser um “simples” filme de acção, mas denota demasiadas preocupações e demasiados retoques no guião e na montagem. Perde-se demasiado tempo com algumas coisas e não se desenvolve aquilo que deveria ser mais relevante. Por exemplo, o herói está moribundo num momento e em forma segundos depois, apenas porque tal é conveniente à estrutura de flashback. O encontro com Elektra (Garner) e o desenvolvimento da relação são centrais ao filme, mas a construção é deveras pobre. Ora são amigos, ora são inimigos, ora se conhecem, ora são amantes. Tal é mais notório e frustrante na última cena em que os dois estão juntos e no modo como a personagem de Elektra é tão mal usada, não evocando nem um pouco da aura de mistério e perigo da figura da BD. De uma personagem que é sexy e letal, passamos para uma moça jeitosa e que sabe andar à pancada. Também seria interessante ver Elektra realmente como uma super-vilã ou heroína (conforme o ponto de vista) com o traje adequado. Ou parafraseando Bullseye (Farrell): “quero o raio de um uniforme!”

Garner Affleck
Conflito de interesses: Elektra vs. Daredevil vs. Matt Murdock
A maior falha do filme é realmente a dimensão humana, o drama, a tragédia. Nada disso chega ao celulóide, persistindo alguma acção mediana, executada pela equipa de Hong Kong, com coreografia de Yuen Cheung-yan («Once Upon a Time in China», «Red Wolf», «Anjos de Charlie»), com restante trabalho pela Digital Domain e outras empresas especializadas em efeitos digitais. Tal como no «Homem-Aranha» sente-se demasiada a presença digital, e enquanto for notório que o que está a cair para a morte é uma imagem gerada por computador e não uma pessoa real, não há conectividade emocional com o material apresentado.

Para além do drama onde não se investiu, a temática de «Daredevil» daria pano para mangas no que toca às contradições que envolvem a figura de Matt Murdock, nomeadamente como é que um peão do sistema judicial, que trabalha para a aplicação da lei num processo criminal, que tem por base o princípio da presunção de inocência, pode defender a execução sumária de um arguido. No filme nem sequer nos mostram Murdock de algum modo a confirmar a culpa de uma das suas vítimas, por motivos óbvios: se assistisse, agia; se tivesse provas, apresentava-as. O criminoso é condenado pelo rosto de sofrimento da vítima e pela sua própria expressão de satisfação de se ter safado. Um pouco como na televisão da vida real.

Affleck
Outras razões para que o filme não chegue a ser o tal “simples filme de acção”, são os muito dispensáveis insultos à inteligência da audiência (ainda que em certas sessões esse conceito possa parecer um mito), que podem ser exemplificados com duas situações. A primeira é quando Murdock segura um objecto gravados com caracteres em braille. Analisa-o e diz (para nós): “braille...”; o outro é uma das mais estúpidas utilizações de computadores que poderíamos imaginar, quando o jornalista Ben Urich (Pantoliano) considera se publica ou não um texto. Johnson, ao escrever o texto, só pode ter pensado que muito poucas pessoas usam realmente computadores e processadores de texto e que o resto da audiência nunca perceberia o que está a acontecer se o respectivo funcionamento fosse normal e não uma ficção pateta, motivada pela necessidade de ilustrar algo “graficamente”.

Numa nota final, acrescenta-se que a sequência dos créditos iniciais em braille – e não é estranho que não tenha aparecido uma indicação a dizer “isto é braille” –, sobre os céus de Nova Iorque, é uma curiosidade estética, mas não está propriamente a abrir novos caminhos; tal foi já usado no filme de Hong Kong «Gin Gwai/The Eye» (2002), que deverá estrear este ano em Portugal, pois, felizmente, por cá ainda vai havendo espaço de exibição para bons filmes.

**
classificações


UCI El Corte Inglés 9. Som multicanal dinâmico, claramente DTS, ainda que se tenha projectado o trailer Dolby Digital antes do filme. Mal focado.

Publicado on-line em 27/4/03.