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Os Anjos de Charlie/Charlie's Angels
Realizado por McG(Joseph McGinty Nichol)
EUA, 2000 Cor – 98 min.. Anamórfico.

Com: Cameron Diaz, Drew Barrymore, Lucy Liu, Bill Murray, Sam Rockwell, Tim Curry, Kelly Lynch, Crispin Glover, John Forsythe, Matt LeBlanc, LL Cool J, Tom Green, Luke Wilson

“Charlie” é a voz sem rosto (Forsythe, tal como na série de TV original) de um milionário que decidiu investir a sua fortuna no combate ao crime, através de um conceito improvável, mas sugestivo: contratar mulheres jovens e sensuais para fazer o trabalho sujo. Os “anjos” são Natalie (Diaz), Dylan (Barrymore) e Alex (Liu). Bosley (Murray) é o intermediário entre o patrão e as operacionais. A missão das raparigas é, inicialmente, encontrar Eric Knox (Rockwell), um industrial raptado. O suspeito sugerido é Corwin (Curry), que trabalha no mesmo campo de negócios.

«Os Anjos de Charlie» põe de lado qualquer seriedade, assumindo-se desde o início como uma comédia descomprometida e leve. As opiniões dividem-se tendencialmente entre os que apreciam a “palhaçada” e os que não acham graça nenhuma. O que é problemático, e arruína verdadeiramente o que podia ser um filme descontraído e divertido, é que a comédia é usada como desculpa para um filme de acção incoerente, ao invés de servir para lidar com clichés ou contornar limitações de género. «Austin Powers» pode suscitar alguns ódios, mas é o exemplo de como a comédia pode usar e baralhar estes mecanismos e estereótipos sem trair o espectador. Num caso e no outro, a tendência é para gostar ou odiar, mas o paralelismo fica-se por aí.

A tipo de humor do filme de McG – porque o estúdio arrisca colocar dinheiro nas mãos de alguém que nem um nome “normal” coloca nos créditos é um mistério – é apresentado na introdução das heroínas. Elas sempre foram “rebeldes” e “diferentes” das outras, diz a narração, mostrando imagens do que habitualmente vemos em comédias de adolescentes como exemplos de diferença e rebeldia (gestos obscenos, roupa de fã de heavy metal, em suma, umas moças obviamente “muita malucas”). Garantido para quebrar o gelo em festas para menores de 16 anos. Claro que algumas coisas têm piada (agora não me lembro de um bom exemplo para dar, mas hei-de inserir qualquer coisa, se me ocorrer algo até ao fim do texto), mas não precisamos de ver as raparigas numa galhofa constante e irritante. Quase tão irritante como o personagem Chad (Green), que se baseia no conceito “tão idiota, que há-de acabar por fazer rir”, mas que acaba por se ficar pelo “tão idiota”.

Circulam por aí rumores de um pretenso “feminismo” no filme. Na minha opinião (suspeita, por uma questão incontornável de género), nem por isso. Se feminismo consiste em apresentar mulheres que trocam de parceiro sexual como quem troca de camisa, e usam a sua sexualidade como ferramenta de trabalho (basicamente atrapalham os homens usando decotes generosos), então sim. O factor decisor é a resposta à pergunta: “o filme destina-se sobretudo ao público feminino ou esforça-se mais por mostrar o que os homens querem ver?” Note-se que apesar de Barrymore ser produtora, o filme é realizado por um homem e escrito por outros cinco (sem contar com prováveis contribuições não creditadas, porque este é um tipo filme que precisa de muito “input” criativo).

As incoerências têm tamanhos variados, e exigem que o espectador pisque com frequência, de preferência por alguns minutos de cada vez. Pormenores a que ninguém ligará: uma caravana perfurada por balas que, subitamente, apresenta buracos feitos de fora para dentro e a cuidada maquilhagem que se auto-aplica nas actrizes, depois de um mergulho no mar. Pior do que isso é o plano maligno – que tem mesmo que se tornar maior que o filme, porque o público não ficaria satisfeito com a resolução de um “simples” crime – do vilão que se torna completamente idiota na sua execução. Os recursos empregues para obter os fins são desproporcionados. Quanto a isso, nada a opor (hey, é um filme grande). Mas, pouco depois, o seu objectivo torna-se diferente, sem explicação alguma (a diferença é de algumas megatoneladas de explosivo).

É difícil aceitar a realidade de «Charlie's Angels». O humor não pode remendar tudo, nem consegue levar-nos a suspender a descrença de tal modo. A “ideia” a executar sobrepõe-se a tudo o resto. Admite-se que se abra a porta de um avião em grande altitude sem consequências. Cria-se uma patética cena de acção, a la «Missão Impossível», numa sala em que uma das protecções é um limite do tempo de pressão no chão. Duas perguntas: porquê um tempo mínimo? Porque não disparar o alarme a qualquer pressão? E qual a diferença que vai de uma entrada em saltos mortais, para, digamos, saltitar mesmo-muito-depressa, sempre a direito?

Hoje em dia, surgem referências a «The Matrix» por dá cá aquela palha, porque é o filme que “toda a gente” viu, e isso inclui os críticos. Se aqui há algo de semelhante, talvez seja uma cena com uma bala em slow-motion (motion muito slow); ainda assim, nada que não tenha aparecido no cinema, mesmo antes do filme dos Wachowskies, com a diferença de nem todos os orçamentos permitirem sofisticação visual. Para quem não sabe, as artes marciais existiam antes do referido filme (algumas centenas de anos – a sério), e o coreógrafo de acção não foi Yuen Woo-ping – ao contrário do que se escreveu no Diário de Notícias –, mas sim Yuen Cheung-yan, por acaso irmão daquele. Yuen aparece creditado como responsável por “efeitos especiais de artes marciais” e tem de se fazer justiça ao crédito, dada a artificialidade de algumas sequências e sobretudo pela repetição de “técnicas”, parecendo ser sempre tudo muito igual, independentemente do cenário e dos intervenientes. No meio disto, a personagem de Crispin Glover é, no mínimo, curiosa.

Sem dúvida existem algumas cenas que impressionam uma audiência pouco familiar com o cinema de artes marciais (asiático), que é algo que «Os Anjos de Charlie», e Hollywood em geral, não procura fazer. De contrário, o orçamento podia ser 10 vezes inferior e em vez de estrelas populares, contratar-se-iam actrizes com capacidades físicas adequadas próprias, como Michelle Yeoh ou Michiko Nishiwaki (que aqui trabalhou como dupla).

Os “outtakes” (cenas não usadas ou meras trapalhadas), que se podem ver no final do filme, são desinteressantes e sem graça alguma, levando-nos a questionar qual o propósito da sua inclusão. Talvez por uma questão de coerência, para com um filme repleto de elementos despropositados.

**
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Publicado on-line em 10/12/00.