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Blade II
Realizado por Guillermo del Toro
EUA/Alemanha, 2002 Cor – 117 min..

Com: Wesley Snipes, Kris Kristofferson, Ron Perlman, Leonor Varela, Norman Reedus, Thomas Kreschmann, Luke Goss, Matthew Schulze, Danny John Jules, Donnie Yen Ji-dan

Depois de procurar o seu mentor, Whistler (Kristofferson), na cidade de Praga, Blade (Snipes), agora com um novo ajudante, Scud (Reedus), prepara-se para continuar alegremente com a matança de vampiros, quando é forçado a defrontar a ameaça de uma nova espécie de predadores, mais mortífera, perigosa e difícil de exterminar; os “Reapers”. Anteriores inimigos mortais poderão agora ter de servir durante algum tempo como aliados, na prossecução de um objectivo comum. Mas poderão confiar uns nos outros?

Guillermo del Toro ganhou uma certa notoriedade nos circuitos do “art cinema” com a sua primeira longa metragem «Cronos» (1993), a qual aborda o vampirismo por um prisma invulgar e onde introduz alguns dos temas que iriam mostrar-se recorrentes nas obras seguintes, como um certo fascínio pela morfologia dos insectos. Infelizmente puseram-no ao “comando” de «Mimic» (1997), mas o seu controle sobre o filme foi muito reduzido, em particular a meia hora final, que pouco ou nada tinha a ver com as intenções do realizador. Durante a rodagem e montagem de «Blade II», del Toro conseguiu trabalhar com pouca interferência do estúdio, em parte devido ao facto da New Line estar mais preocupada com o primeiro tomo de «Lord of the Rings» (2001), de modo que, apesar de algo inconsequente, esta obra denota um certo desembaraço criativo.

Se, por um lado, Guillermo del Toro conseguiu trabalhar sem grandes constrangimentos, por outro, consciente de estar a fazer um “simples” filme de acção pipocante, a sua atitude foi de total descontracção e de um notório estar-se nas tintas para a coerência e por interessar o espectador pelas rotas dramáticas das suas personagens, algo que certamente já viria do argumento de David S. Goyer, autor também do primeiro tomo de uma série que obviamente não vai ficar por aqui. É fácil de apreciar um filme assim, mas a verdade é que é muito ténue a linha que separa um filme de acção simples, divertido e sem pretensões “artísticas”, de um filme de acção inconsistente e demasiado confiante na sua eficácia enquanto espectáculo visual.

[O parágrafo seguinte inclui referências a pormenores cruciais do «Blade» original, não se recomendando a sua leitura a quem não tenha ainda visto esse filme.]

Narrativamente, «Blade II» começa por nos chatear, ao mandar às favas o final e determinados desenvolvimentos dramáticos do filme anterior. Mais chateia, quando se trata do mesmo argumentista. Aqui se inclui o facto de se ignorar a personagem da hematologista interpretada por N'Bushe Wright, que, no final do filme anterior, parecia ter ganho o papel de assistente científico do herói, e, quem sabe, de “interesse romântico”, mas aqui nem uma referênciazita oral, bem como o destino de Whistler, que é mais ou mesmo revisto num pseudo-flashback, no início desta sequela, que constitui uma distorção irritante de um facto consumado: Whistler morreu. Suicidou-se. Tal foi apresentado off-screen, é certo, mas apenas por razões dramáticas. De modo algum se pode ter admitido a sua sobrevivência. Isto é reforçado com o facto de que a personagem de Kristofferson sofria de cancro e essa situação, no filme original, era já um modo de telegrafar aquilo que o argumentista lhe tinha destinado. Tal é ignorado na sequela.

Acrescem outros factores que afectam gravitacionalmente o nível do argumento, por serem demasiado redutores e convenientes, como os Reapers, que são quase indestrutíveis quando são 4 ou 5, mas que se tornam em frágeis criaturazinhas quando estão em grupos grandes, exigindo um elevado número de mortes por minuto. A concepção das armas a utilizar também é paupérima. As granadas constituem um elemento extremamente desinteressante. A lógica seria equipar os guerreiros com grande holofotes (e com um gerador às costas...), mas, sendo óbvio que tal não seria propriamente emocionante, em vez de se criarem conceitos com aplicações pouco sugestivas (como desperdiçar dezenas de armas de uma só vez, numa bomba com um mecanismo rudimentar e defeituoso), poderia teria tido mais impacto manter o filme e as cenas de acção mais próximos das suas fontes de inspiração – chambara, acção made in Hong Kong, anime, etc. – explorando e desenvolvendo a utilização das lâminas e das simples armas que disparam balas quando se pressiona o gatilho. No que toca às influências, apesar de ser de apreciar que del Toro não tenha quaisquer problemas em listar alguns quilos delas («Fong Sai-yuk», «Fist of Legend», «Iron Monkey», «Swordsman», «Ghost in the Shell», «Perfect Blue», «Vampire Hunter D», «Ninja Scroll»,... – in Mad Movies), é curioso que «Wicked City» nunca tenha vindo à baila, já que o argumento-base (pelo menos da versão filme) é algo similar ao «Blade» original. E os monstros, se não estou em erro, são até apelidados de Reapers em algumas versões.

Quanto à acção, aquilo que por vezes, por si só, pode fazer um filme bom ou meramente agradável, mesmo quando o argumento é minimal – veja-se, por exemplo, «Ronin» (1998), do lamentavelmente recentemente falecido John Frankenheimer, ou até as dezenas de filmes de artes marciais que conseguem superar uma história ridícula que lhes serve de fundo –, mas isso foi algo que falhou em «Blade II», sendo particularmente grave o facto de todo o filme se suster sobre esse alicerce. Tanto Snipes como del Toro são conhecedores do cinema de acção asiático, em particular de Hong Kong, e a contratação de [Donnie] Yen Ji-dan, discípulo de Yuen Woo-ping, nome famoso no Ocidente deste «The Matrix» (1999), poderia sugerir um valor acrescentado na execução dos combates corpo a corpo. O problema não é a coreografia em si, mas – como quase sempre sucede – as tomadas de câmara e a montagem MTV, muito típica do cinema americano. Esta montagem, que impõe o corte frenético entre golpe, impacto e reacção, em quase todas as cenas de acção, é adequada (ou melhor, tolerada) no tipo de acção feito em Hollywood (i.e., aborrecido e curto). As sequências longas, mais ao estilo asiático, são enquadradas de um modo completamente diferente (um génio qualquer lembrou-se que seria interessante deixar a audiência ver o que está a acontecer no ecrã) e a montagem não é usada para quebrar a ilusão de que os actores estão “mesmo” à pancada, nem para provocar tonturas e dores de cabeça (por alguma razão o director de acção em Hong Kong costuma ser responsável pelas tomadas de câmara, quando não tem também um papel decisório na mesa de montagem). Um factor extra de aborrecimento pessoal é a má utilização do próprio Yen, enquanto actor.

O filme original de Stephen Norrington é menos frenético, mas o realizador demonstrou maior sensibilidade na composição dos planos de acção. (Vê-se realmente alguma coisa.) A utilização do espaço extra do formato scope, rejeitado pela sequela, também parece ter valorizado esse trabalho. Por outro lado, apesar do que se disse sobre o modo como «Blade II» passou com facilidade pela censura do MPAA, apesar da grande quantidade de cenas de violência, é um facto que a sequela é mais light do que o filme original, que retinha uma maior ligação com o mundo dos humanos e o sangue que jorrava era “verdadeiro”. Aqui, os efeitos visuais dominam as destruições físicas e, para um filme de vampiros, o sangue, vermelho, é extremamente reduzido. Não sendo propriamente um filme superior, o original parece ter apontado para uma audiência mais madura.

«Blade II» apresenta algumas personagens cujos dilemas internos poderiam dar azo a alguma densidade dramática, mas essas situações ficaram-se por duas linhas de texto no guião. Veja-se, por exemplo, o conflito pai-filha, a (potencial) relação trágico-sentimental entre os dois inimigos ou as motivações da revolta de Nomak – Goss, sob uma refinada composição monstruosa, que quase supera a da sua antiga banda (Bros.) – contra a sociedade dos vampiros.

Por ora, esperemos «El Espinazo del Diablo» (2001), rodado por del Toro em Espanha, um filme de autor que, em princípio, terá melhores hipóteses de satisfazer as audiências com espírito mais cinéfilo e pelo próximo «Hellboy», com Ron Perlman – que o realizador parece ter conseguido impor ao estúdio – a encarnar mais uma personagem da BD a ser transposta para o cinema.

**1/2
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Publicado on-line em 17/7/02.