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Storytelling – Conta-me Histórias/Storytelling
Realizado por Todd Solondz EUA, 2001 Cor – 87 min. Com: Selma Blair, Leo Fitzpatrick, Robert Wisdom, Maria Thayer (Fiction) Paul Giamatti, Mike Schank, Xander Berkeley, Mark Webber, John Goodman, Julie Hagerty, Jonathan Osser, Noah Fleiss, Lupe Ontiveros (Nonfiction)
“Fiction”: uma aula de escrita criativa numa universidade norte-americana, em meados dos anos 80. Vi (Blair) tem uma relação com o colega Marcus (Fitzpatrick), que sofre de paralisia cerebral. As críticas do professor Scott (Wisdom) não poupam sensibilidades. “Nonfiction”: Toby Oxman (Giamatti) decide fazer um documentário sobre um adolescente normal e os seus dilemas, entre o liceu e a universidade. Escolhe Scooby (Webber) e começa a filmá-lo na escola e em casa, onde vive com o pai, Marty (Goodman), a mãe, Fern (Hagerty), dois irmãos, Mikey (Osser) e Brady (Fleiss) e a empregada, emigrada de El Salvador, Consuelo (Ontiveros). Marty quer que Scooby tire um curso superior para ter acesso a um bom emprego, mas o jovem apenas quer ser famoso, de preferência como apresentador de televisão.
«Happiness» (1998) é responsável pelas altas expectativas perante um filme de Todd Solondz e a comparação com esse filme poderá ser fonte de algumas desilusões. «Storytelling» não é um filme tão perfeito nem tão completo como a obra anterior de Solondz, uma refinada iguaria cinematográfica, a deglutir diálogo a diálogo, temperada com um cinismo mordaz sem freios, pelo humor negro devastador, mas também por uma atitude definida por alguns como o desprezo do autor pelas suas personagens. O registo de ambos os filmes é semelhante, mas enquanto em «Happiness» tudo parece cuidadosamente, milimetricamente, escrito e executado, o que mais ressalta neste «Storytelling» é a extrema frieza e o distanciamento emocional do material. A existência de duas histórias, arrancando com uma que poderia funcionar, isolada, como uma autêntica curta-metragem, parece contribuir para a sensação de estarmos perante material em bruto, ainda por polir. Por outro lado, esta crueza “não manipulada” adiciona um certo pendor de realismo e reforça a exasperação perante a injusteza da vida: é tramada, não há nada a fazer senão aceitar as desgraças e as bofetadas irónicas do destino.
Em “Fiction”, o segmento inicial, mais curto, destacam-se dois conceitos. Primeiro, a afirmação de que origem do material numa obra de ficção é irrelevante, a partir do momento em que integra essa obra. Não interessa se o autor inventou tudo, se se baseia em factos reais ou se camufla uma experiência pessoal. A partir do momento em que o livro, a peça ou o filme estão concluídos estamos perante ficção (por alguma razão, mesmo biografias dramatizadas não deixam de apor a nota final de que pessoas, instituições, marcas, etc., são criação dos autores e qualquer semelhança é coincidência ou má vontade). Como não podia deixar de ser, Solondz ilustra isto de um modo extremo, chocante para alguns, mantendo ainda um humor deveras retorcido a pairar sobre a situação. Mas o que é ou deixa de ser chocante, se se trata de ficção?
A dura lição (duplo sentido não intencional) dada a uma personagem leva-nos a um patamar sociológico: aceitar as diferenças dos outros, as minorias, as deficiências, etc., terá de se revestir por comportamentos activos? Devemos sair pela rua fora a tentar meter conversa – socializar – com grupos étnicos minoritários? É isso em que consiste não ser racista? Solondz goza com certos comportamentos “activos” derivados de modos de pensar semelhantes. Não temos aqui personagens que nos façam sentir qualquer empatia – e fracos ou fortes não o são automaticamente devido às suas caracterizações externas –, nem vítimas ou agressores, apenas ironia cruel. Quando vemos Vi com Marcus, que afirma que já não há “kinkiness” na relação e que ela se tornou “boazinha” (a tradução nas legendas não capta o sentido real do primeiro termo) e quando a vemos com t-shirts de “USA for Africa” ou de Biko, estamos já a ser preparados para a “punchline”.
"Storytelling" é um disco coerente com a restante discografia dos Belle and Sebastian, onde se incluem 5 álbuns e uns 7 singles, mas, tratando-se de uma banda sonora, é naturalmente constituído em boa parte por peças instrumentais, havendo lugar para meia dúzia de vocalizações e alguns excertos dos diálogos mais representativos do filme, preenchendo os cerca de 35 minutos da sua duração total.
Sobre a relação de colaboração com o realizador, Stevie Jackson assume que mal começaram a escrever a música, logo a "verdadeira natureza" da banda veio à tona: "depressa nos começámos a comportar como tarefeiros profissionais, compondo, a pedido, jingles ao jeito das sitcoms dos anos 70 e despejando canções com letras referindo-se à acção do argumento". O saldo final do esforço terá sido positivo para todos, apesar de apenas 6 minutos da música terem sido usados no filme. Para os créditos finais, escreveram-se três canções. Uma baseada na personagem de Consuelo ("Wandering Alone"), outra pretendo passar por reflexões do actor Robert Wisdom (Mr. Scott), manifestando os seus receios de ficar preso a um certo estereótipo ("Big John Shaft"). A terceira canção foi pensada como uma "ode" ao próprio Todd Solondz ("Storytelling"), que, por alguma razão, a preferiu às anteriores. O tema, cuja letra abaixo se reproduz numa tradução tendencialmente literal, acaba por constituir uma apreciação crítica da obra daquele que é um dos mais "polémicos" cineastas americanos dos nossos dias. Note-se que a canção "The State I Am In", que se ouve no quarto de Scooby, foi gravada originalmente em 1996, não sendo incluida neste disco.
Visualiza uma cena na tua mente
Se és um contador de histórias poderás pensar que não tens responsabilidade
Já pensaste de que modo
Agora és um contador de histórias, podes pensar que não tens responsabilidade
Como podes terminar o conto?
És apenas um contador de histórias
Por detrás da frieza, humor negro e crua ironia de «Storytelling» encontram-se interessantes considerações sobre a natureza da escrita criativa e sobre a percepção, mais clínica ou mais emocional, que nós, enquanto espectadores podemos formar perante uma obra artística. Há quem classifique o material de Solondz como uma espécie de onanismo intelectual vazio e que se orgulhe de lhe ter apontado o dedo “logo” em «Happiness», enquanto outros se recusarão a ignorá-lo, enquanto um dos mais interessantes autores no panorama cinematográfico norte-americano contemporâneo. Não sendo um trabalho tão bem definido e estruturado como a entrada anterior na sua cinematografia, «Storytelling» também está longe de representar uma queda a pique. No fundo, a nossa aceitação pode depender do nível de provocação (intelectual?) que estamos predispostos a aceitar.
O segundo segmento conta com uma banda sonora dos escoceses Belle & Sebastian [ver caixa, ao lado], que se ajusta perfeitamente ao universo dos adolescentes apáticos e indecisos e que praticam actos “imorais”, por detrás da porta dos seus quartos. Parece que a banda não apreciou muito a experiência (apenas uma pequena parte do seu trabalho foi usada), e que algumas letras o reflectem. Talvez por isso a música seja editada apenas no início Junho de 2002, e não na forma de BSO, mas como mais um disco da banda, com uma capa com design coerente com os discos anteriores. A música do primeiro segmento é assinada por Nathan Larson.
Todd Solondz tem tido o “final cut” (aprovação da versão final) dos seus filmes. Mas o contrato com o estúdio obrigava à entrega de um filme classificado R-Restricted (não aconselhável a menores de 17). Como existe uma cena de sexo que implicaria a imposição por parte da MPAA de um NC-17 (interdito a menores de 17, classificação-estigma de “filme adulto” e beijo da morte comercial), Solondz decidiu – para grande irritação do distribuidor americano – colocar um grande e brilhante rectângulo vermelho sobre o material ofensivo, aproveitando assim também para fazer um comentário sobre a politica de classificação e exibição nos EUA e como facilmente leva à censura. As cópias para o estrangeiro, felizmente, não vieram “marcadas”, o que poderia acontecer se um único estúdio de Hollywood controlasse a distribuição mundial.
A legendagem de «Conta-me Histórias» é invulgarmente franca, fazendo justiça ao palavreado forte, essencial à transmissão do impacto de certas cenas, fugindo ao instituído sistema de censura mal assumida que por cá vamos tendo. Infelizmente, persiste ainda um certo paternalismo, tentando-se explicar sem explicar, escolhendo-se palavras ou expressões que toda a gente perceberá, mas que nem sempre são uma tradução fiel (ou sequer correcta). Neste caso incluem-se referências ao “complexo Bennetton” e a “clichés Mandingo” que não chegam ao texto português. Expressões que talvez a generalidade das pessoas que vão ver o filme entenderá melhor do que o tradutor.
Publicado on-line em 30/5/02.
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