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The Matrix Reloaded
Realizado por The Wachowski Brothers (Andy e Larry)
EUA/Austrália, 2003 Cor - 138. Anamórfico.

Com: Keanu Reeves, Laurence Fishburne, Carrie-Anne Moss, Hugo Weaving, Jada Pinkett Smith, Gloria Foster, Monica Belucci, Collin Chou (Ngai Sing), Nona Gaye, Randall Duk Kim

Poster
Meses depois do final do filme original, Neo (Reeves) participa activamente em operações no interior da Matrix e na libertação de humanos. Entretanto, o inimigo avança no subsolo, escavando caminho até ao local da última cidade humana, Zion, e Morpheus (Fishburne) tenta fazer valer a sua estratégia perante o conselho que governa a cidade, enfrentando a oposição de capitães de outras naves. Neo têm sonhos recorrentes em que vê Trinity (Moss) em perigo de vida e receia o futuro que se avizinha. A Oráculo (Foster) contacta-o e dá-lhe novas indicações sobre o caminho a seguir.

[N.B.: Se não viu «The Matrix» a leitura deste texto não é recomendada.]

Com estreia praticamente simultânea por todo o mundo (o que a pirataria e as importações de DVDs obrigam os estúdios a fazer...), «Matrix Reloaded» é sem dúvida um dos filmes mais aguardados pelas audiências mundiais, sobretudo devido a uma certa capacidade de "crossover invertido". O termo "crossover" é empregue pelos estúdios quando um filme independente ou falado numa língua estrangeira surpreendentemente se revela um sucesso de audiências (a surpresa reconduz-se mais ou menos ao facto do público responder positivamente e en masse a um título originado fora do circuito e sem ter sido produzido especificamente para agradar a toda a gente). Significa, pois, que o filme em causa devia confinar-se ao seu cantinho sem chatear ninguém (salas especializadas em grandes cidades) e sem "ameaçar" o território dos blockbusters (os multiplexes).

A trilogia «The Matrix» é um produto obviamente concebido para o grande público (nada de mal nisso, como é natural; de outro modo era impossível pagar efeitos visuais digitais cada vez mais convincentes), mas sustém-se numa vasta panóplia de referências digeridas pelos Wachowskies e regurgitadas no guião que garantem o alargamento tentacular da sua influência a certos nichos de mercado, cinefilias diversas e fanboys em geral. Há aqui um pouco para todos; do adolescente que acha "muita maluco" e "um espectáculo", ao fã ferrenho que desenha planos arquitectónicos de cenários ou sabe quanto botões têm a roupa de Trinity. E também há uma mitologia, derivada de conceitos de religião familiares, e simbologia q.b. — mais ou menos subtil — capaz de tilintar alguns neurónios daqueles que se deixem absorver pelo universo “real” e virtual dos filmes.

combate CGI
Neo testa os seus poderes contra Smith(s).
O segundo filme ajusta-se extremamente bem à narrativa, universo e personagens do original, pelo que me parece que dificilmente «Matrix Reloaded» possa revelar-se uma decepção entre aqueles que apreciaram «The Matrix». O argumento deste segundo tomo não deixa nada para trás e desenvolve, ramificando, os elementos pré-estabelecidos, e tornando o universo — da Matrix e de fora dela — mais complexo, com a introdução de uma maior variedade de personagens e, sobretudo, de facções: onde antes tínhamos fundamentalmente um despertar para a fé e o nascimento de um Messias, temos agora Neo a ser venerado como tal pelo povo, mas também a enfrentar a descrença por parte de elementos do poder. Como seria de prever, o fluxo dos acontecimentos leva-nos na direcção da própria criação e serão apresentados factos que irão questionar a realidade apresentada anteriormente. Dentro da Matrix, Mr. Smith renova-se como arqui-inimigo de Neo — que condensa o perfil “moderno” do super-herói com o “clássico” de um deus — apresentando-se também como uma figura “libertada”, mas com um sentido naturalmente diferente das marionetas humanas que abraçam o mundo real. Smith já não é um programa controlado pela Matrix, mas uma entidade rebelde, provavelmente rotulada de “bug” pelos que dominam o sistema.

Belucci
Persephone conduz Neo, Morpheus e Trinity.
Estas obras não suscitam uma apreciação pela sua “originalidade”, pois reconduzem-se a uma boa síntese de fontes pré-existentes, bem desenvolvida, dando origem a uma história em tons de épico religioso, revestida por muita acção CGI e de artes marciais. «The Matrix» é formalmente uma homenagem ao cinema de gangsters de Hong Kong (referência mais óbvia: John Woo até «Hard-Boiled»), à estética da animação e banda desenhada japonesas — por alguma razão a série “Animatrix” é dirigida por cineastas de anime, com excepção do único seleccionado para projecção em cinema, «O Último Voo da Osiris» [1] — e o cinema de artes marciais mais movimentado, produzido na ex-colónia britânica. A referência aqui é, obviamente, Yuen Woo-ping ou, como os Wachowskies diriam, "o gajo que fez «Fist of Legend»" e que eles fizeram questão de contratar. No que toca à acção, Andy e Larry Wachowski investiram claramente mais nesta última vertente, dando mais trabalho e tempo de ecrã ao talento de Yuen. A utilização de armas de fogo é quase irrelevante (quem sabe, também decorra de alguma sensibilização aos lobbies que asseguram que filmes como «The Matrix» programam jovens inconscientes para chacinar colegas e professores com armas automáticas) e os segmentos de artes marciais ganham um fôlego redobrado, com os duelos intricados entre Reeves e Ngai Sing ou contra os sequazes de Merovingian (Wilson), encabeçados pelos Gémeos (Neil e Adrian Rayment), dando azo também a uma exibição de técnicas e armas diversificadas.

Neo vs Seraph
Neo enfrenta Seraph.
A diferença dos Wachowskies para praticamente todos os realizadores norte-americanos que recorrem aos serviços de coreógrafos de acção e artes marciais de Hong Kong, como Corey Yuen Kwai ou o irmão de Yuen Woo-ping, Yuen Cheung-yan, com a excepção de Brian Singer no primeiro «X-Men» (2000), é que têm consciência da incompatibilidade dos sistemas, tanto quanto não se coíbem de ilustrar a utilização de meios informáticos com um mínimo de realismo (os especialistas dizem que o hacking está muito bem representado). Contratar um director de acção chinês como Yuen (bom, um dos três) e submete-lo a um realizador da geração MTV que coloca as câmaras a rodopiar aleatoriamente, enquadra demasiado em cima dos actores, precedendo a montagem padrão da acção de Hollywood (movimento/impacto/reacção), não dá resultados positivos. Desse modo, os Wachowskies investiram meses no treino dos actores em “artes marciais para cinema” de modo a que pudessem participar em coreografias intricadas e fluídas com a câmara a enquadrar a acção e sem uma montagem nervosa a trair o realismo. Os resultados estão à vista.

Trinity e Neo
Como se disse anteriormente, «The Matrix» não prima pela pura originalidade. Para além das referências asiáticas mais óbvias, encontramos elementos já empregues em «Dark City» de Alex Proyas e em «Abre los Ojos» de Alejandro Amenabar (remisturado em inglês como «Vanilla Sky»). Evitando revelar pormenores desnecessários sobre um ou outro filme, algumas referências à obra espanhola constituem verdadeiras citações (a explicação do "déjà vu", a "pausa",...) O guião dos Wachowskies consegue, no entanto, ser coerente com o próprio mundo criado, desenvolvendo picos dramáticos e novas revelações de modo sóbrio e equilibrado. Acresce a vertente filme de acção muito bem realizada. Em suspenso fica a história, preparando-se já a conclusão da trilogia ainda este ano, anunciada por um trailer no final do filme, em jeito de aperitivo.

****
classificações

[1] «O Último Voo da Osíris» pode ser visto como uma prequela, mas afere-se-nos mais como uma nota de rodapé ao corrente filme, uma vez que o desenvolvimento é mínimo, apenas se ilustra um facto referido em «Matrix Reloaded», i.e., a queda da referida nave.


Publicado on-line em 2/6/03.