O Canale da Qultura – RTP 2, Parte 2
Em Julho de 1997, escrevi um texto sobre a RTP2 – então na encarnação que dava pelo nome de TV2 –, que havia iniciado, há não muito tempo, os ciclos de cinema semanais, agrupados sob temáticas diversas, na rubrica que se apelidou de “5 Noites, 5 Filmes”. Esse texto constituiu uma espécie de lamento cinéfilo sobre o desinteresse ou a falta de formação dos programadores do canal cultural do serviço público, que se sempre se mostraram confortáveis com qualquer que fosse o estado e as características das cópias exibidas.
Cinco anos depois, nada mudou. Pelo menos no que toca aos aspectos ditos formais de exibição. O programador de cinema da RTP2 elabora listas semanais, alguém vai ao arquivo ou ao “videoclube”, mete a cassete a rolar, e pronto; está o espaço preenchido.
Tradição. Sempre foi difícil suportar a exibição de filmes na TV: formatados (com o enquadramento cortado ou alterado, até perto de metade), com uma imagem frequentemente má, com logótipos e bolinhas a cobrirem a imagem e com interrupções aleatórias. Os padrões a que o DVD nos habituou vieram apenas reforçar o fosso qualitativo. Se há canal que em Portugal teria a obrigação de exibir obras cinematográficas com respeito pelas suas características originais, tal canal seria a RTP2, já que o primeiro canal se apresenta como canal generalista. Mas, para além de seleccionar filmes diferentes dos que normalmente passam nos outros canais, os seus critérios são os mesmos que regem a SIC, a TVI ou o primeiro canal; isto é, não existem.
Se o respeito pelos formatos de exibição é mais do que uma questão técnica ou formal – onde é que se encaixam os comentários da imprensa ou, quem sabe, no próprio site da RTP ou no teletexto, referindo-se à composição e/ou fotografia de um filme que é exibido com metade da imagem cortada? – é difícil de entender como é que os canais do estado podem considerar natural apresentar versões censuradas e dobradas de certos filmes, mesmo numa altura em que poderiam ter interesse em “impressionar” as elites. Tal tem acontecido ao longo dos anos e tudo indica que vai continuar a acontecer, já que mesmo ainda que possamos esperar uma racionalização do serviço público, não parece previsível que venha a existir uma mudança de atitude, extinguindo-se um cenário em que o programador dá por terminado o seu trabalho, depois de elaborar uma lista de filmes para encher buracos de emissão. Ou seja, é natural que o trabalho continue a ser “burocrata”, sem se sentir a intervenção de alguém que goste de cinema ou que tenha os mais básicos conhecimentos, ditos técnicos, sobre as características de exibição que devem ser respeitadas.
«Era uma Vez na China»
A versão de «Wong Fei-hung» apresentada pela RTP apresenta as seguintes alterações:
– Há toda uma sequência anterior aos créditos que é removida (quase 6 minutos!) Esta cena mostra a tradicional dança do leão, a bordo de um navio, onde se introduz o tema do filme e se incluem elementos importantes para o contexto narrativo, principalmente a motivação para a criação da milícia que Wong (Jet Li Lianjie) lidera. A versão que a RTP comprou arranca com um texto idiota que tenta resumir e explicar o filme em 25 linhas, e que constitui um insulto à inteligência de qualquer pessoa com um cérebro semi-activo.
– A apresentação da "Tia" de Wong (Rosamund Kwan Chi-lam) altera a confusão com termos em inglês (pois aqui falam todos em inglês...), transformando um cumprimento ("How do you do?") numa dúvida sobre o que é uma máquina fotográfica... Corta-se a maior parte da cena, incluindo a explicação para o regresso dela à China. A personagem de Kwan é aqui chamada "Prima Yee", quando no original é "Tia 13". Noutras traduções aparece como "Tia Yee", mas yee/yi significa tia, e, como tal, ambas as opções são ridículas. "Prima Tia"? "Tia Tia"?
– Leung Foon (Yuen Biao) surge do nada, perseguido por uns malfeitores. Corta-se a sua primeira cena, quando se dirige à clínica de Wong e não o encontra. Incluía-se aqui mais algumas cenas de confusão cultural, com línguas diferentes e outras coisas "esquisitas" como medicina chinesa. Seguia-se mais uma cena em que se mostrava Leung a trabalhar num teatro de ópera chinesa. Apresentava-se ainda os encontros entre ele e a "Tia" de Wong e o primeiro contacto com o Mestre Yim (Yam Sai-kwoon); duas cenas importantíssimas no filme original. Remove-se ainda uma cena que ilustra a tensão e os conflitos com as potências estrangeiras e o início da sequência na casa de chá ao estilo ocidental. Volta-se à Ópera, quando surgem os rufias a exigir dinheiro de protecção. Corta-se tudo isto, incluindo uma pequena demonstração acrobática de Yuen. Isto contabiliza-se em cerca de 15 (quinze) minutos de filme completamente removidos!
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Uma das coisas estranhíssimas a que a versão de «OUATIC» emitida pela RTP poupou os seus telespectadores. |
Seria interessante – ou puro masoquismo, conforme o ponto de vista – comparar o filme todo, com esta patética versão. Mas meros 10 ou 15 minutos chegam e sobram para ilustrar as "necessidades" desta versão: criar um filme com menos de 90 minutos e remover todas as especificidades culturais presentes, tornado o filme o menos "oriental" possível: assim desaparece a dança do leão, a medicina chinesa, as bandeiras e o leque com os caracteres, os desentendimentos com os franceses, os diálogos não entendidos em inglês, a estranheza perante os cristãos abafando a música tradicional, que riposta, algum humor demasiado "específico", todo o background e motivações das personagens principais (Wong, Leung, a "Tia", Yim), a Ópera Chinesa e até parte da acção de artes marciais.
«Once Upon a Time in China/Wong Fei-hung» é um dos filmes mais importantes da história recente do cinema de Hong Kong, tendo sido responsável, no início dos anos 90, por um novo boom do género. É também muito mais do que um filme de kung fu, devido à complexidade narrativa e ao interesse de Tsui Hark em desenvolver o choque cultural – Oriente-Ocidente; tradição-modernidade –, apresentando um povo demasiado entorpecido com conflitos internos, para poder resistir à ocupação e aculturação estrangeiras.
A exibição desta cópia pelo canal cultural do serviço público – mais do que as que se seguiram, com os outros filmes de Tsui – é um verdadeiro ultraje, um insulto à cultura onde tal obra se integra, bem como a qualquer cinéfilo que se preze, e um desprezo pelo contribuinte cujo dinheiro vê assim a ser empregue, não na divulgação da cultura, mas na sua destruição.
Que nos reserva o futuro, no que toca à americanização do cinema asiático? Com os custos económicos do recurso às tecnologias digitais a tornarem-se cada vez mais reduzidos, é de prever que surjam métodos mais eficazes de adaptar filmes asiáticos, quando, por alguma razão, não se quiserem remover certas cenas (p.ex: se o filme original só tiver 90 minutos, há o risco de torná-lo uma curta-metragem).
Veja abaixo como este processo poderá funcionar.
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Antes: um filme asiático cheio de referências incompreensíveis para o comum dos mortais ocidental. |
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Depois: um filme que pode finalmente ser apreciado e entendido por todos. |
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Podem-se dar exemplos de canais que têm linhas editoriais nesta área, como a BBC2, que, tanto quanto pude apurar, costumava exibir cópias num estado diferente das que passavam na BBC1, i.e., no formato original. O canal Arte é outro exemplo: até os logótipos são removidos quando o filme se inicia. Basta passar os olhos pelo canal Hollywood, para entender que também aí existe uma intenção de respeitar os formatos de exibição, sendo frequente ver cópias integrais de filmes que recentemente passaram comprometidos nos nossos canais (isto é, nunca se porá a hipótese que o problema é a inexistência de cópias de qualidade no mercado). Por cá, parece que ninguém acha dispensável ter bonecos, por vezes grandes, coloridos e opacos, a cobrir parte da imagem. Infelizmente temos também bolinhas vermelhas forçadas, devido à nossa lei, mais papista do que o Papa, que opta por tornar cumulativos os requisitos referentes à sinalética destinada à “protecção” de menores, os quais são alternativos no texto da Directiva europeia, que considera suficiente um aviso prévio à exibição de filmes não apropriados a menores, sem necessidade da inestética bolinha. O legislador nacional também não aprecia cinema. É a necessidade que há por cá de mostrar – atirar à cara, se necessário – que se está a fazer alguma coisa, em vez de se fazerem as coisas do modo mais adequado e com um mínimo de bom senso (porque é que um filme precisa de aviso visual permanente mesmo que passe às 3 da manhã; não devem ser os pais a preocuparem-se com o que estão os menores a fazer a essa hora?)
Cinema, Que Cinema? A recente transmissão de cinco filmes de Hong Kong, realizados por Tsui Hark (de 8 a 12 de Julho), incluindo quatro títulos da série «Era uma Vez na China/Wong Fei-hung»), vem reforçar este estado miserável da exibição de cinema pelo suposto serviço público e a suster na origem as potenciais lágrimas do cinéfilo, posto perante a possibilidade da extinção da componente mais “cultural” do “serviço público”, porquanto se pode considerar que nenhum dos 5 filmes foi exibido num estado que respeitasse o material original. Abaixo referem-se os filmes exibidos nessa semana e os respectivos defeitos. [Por razões práticas, usa-se o acrónimo do título inglês de «Era uma Vez na China».]
OUATIC 1 – remontagem censora que tornou o filme irreconhecível e dobrado em inglês [ver caixa];
OUATIC 2 – dobrado em inglês;
OUATIC 5 – formatado 4:3 e dobrado em inglês;
OUATIC 6 – formatado para 16:9, imagem de extrema baixa resolução, com efeito de escadeamento (“aliasing”) de linhas mais finas, aceleração irregular do movimento, sugerindo uma má conversão NTSC-PAL (seria um VCD?), má sincronização do som (que, no entanto, parecia conter os diálogos bilingues de origem);
Espada (Blade/Dao) – formatado 4:3 e dobrado em inglês.
Verbas que deviam ser dispendidas na prossecução de objectivos culturais, acabam por, na prática, ter uma utilização marcadamente anti-cultural.
Ao contrário de respeito pela especificidade cultural de uma cinematografia, estamos perante distorção, adaptação ou revisionismo dessa cultura, através de uma visão paternalista (anglo-saxónica?) do modo como determinada audiência (americanos dos 16 aos 24?) deverá conseguir apreciar tais filmes.
A RTP sugere estar a dar a conhecer cinematografias asiáticas, mas apresenta versões transformadas para um público culturalmente analfabeto, de um qualquer país ocidental.
Na base de muitas destas versões – no caso a do primeiro «Era uma Vez na China» – está uma visão “comercial” que revela uma certa xenofobia, como se ilustra na descrição de algumas das alterações ao referido filme [ver caixa], pois o intuito de quem adultera a obra não é o de mostrar a diversidade da cinematografia (sendo esse, supostamente, um dos motores da programação de cinema da RTP), antes o de torná-la tão digerível como qualquer filme de “porrada” directo-para-vídeo, por um adolescente norte-americano médio. Assim se censuram estes títulos, removendo parte da violência ou outras cenas “não apropriadas”, mas, mais grave, cortando referências culturais específicas, que, no entender dos censores, não se “traduzem” bem para o Ocidente.
Ao exibir estes filmes, a RTP está a subsidiar essa xenofobia cultural.
Programar cinema não é a mesma coisa que ir ao supermercado com uma lista de compras. Pelo menos não devia ser assim, no canal “cultural” do Estado. O desconhecimento nunca poderá ser admitido como desculpa para estes comportamentos por parte dos programadores. É impossível alegar que não se reparou que os filmes estavam dobrados. Por outro lado, se o cidadão “normal” tem acesso a estes filmes nas suas versões originais, como se pode admitir que um canal de TV não os obtenha, se essa for a sua intenção?
2/08/02