O canal público, que - dentro
do mito do Serviço Público -, está vocacionado
para o verdadeiro serviço público, por oposição
ao serviço comercial do outro canal público, sofre
de uma grave crise de identidade. Uma frase tão repetitiva
quase parece um período de publicidade institucional em
que se aborrece de morte o potencial espectador do filme «Inês
de Portugal», antes sequer de pensar em vê-lo.
Mas, o que quer ser a TV2 (ou o conjunto
dos funcionários pagos pelo Orçamento de Estado,
i.e., pelos impostos de todos nós) quando for grande? Será
que quer ser uma SIC semi-intelectual? Ou quer servir apenas para
entreter as poucas pessoas que não têm paciência
para o Canal 1?
A TV2 tem a missão de preencher
um vazio na área da cultura, transmitindo, grosso modo,
programas de informação, de artes e letras, cinema
e teatro seleccionados. É assim que se nos apresenta. Um
canal para um público mais exigente, que não fica
à espera que lhe atirem qualquer coisa do écran
enquanto se afunda no sofá.
O cartão de visita deste canal,
com o que iniciou a sua "nova fase", é a sua
programação diária de cinema. Não
está em causa se é ou não, abstractamente,
o mais importante no âmbito da programação
da TV2, mas é-o na perspectiva dos interesses desta página.
O problema reside fundamentalmente
no facto da TV2 parecer programar mais pela negativa do que pela
positiva. Isto é, rege-se mais pelo género de filmes
que não passa, do que por uma verdadeira selecção
organizada de filmes. Não parece que baste chegar e limitar-se
a não passar "cinema comercial americano", para
se considerar que se presta um bom serviço.
A selecção dos filmes
da semana tem sido pautada por temáticas como "filmes
sobre culinária" ou "filmes sobre Lisboa".
Põem-se, lado a lado, em algo que se apresenta como um
conjunto com pontos de contacto, filmes interessantes e filmes
medíocres, e, pior do que isso, filmes que não têm
nada a ver uns com os outros, para lá da mera coincidência
do pormenor em que o programador decidiu pegar. Na selecção
de filmes sobre homossexualidade feminina e masculina, raros foram
os filmes, de facto, sobre a homossexualidade. E será
que algum foi realizado por um homossexual?
Os filmes são agrupados aleatoriamente.
«The Cook, The Thief, His Wife and Her Lover» foi apresentado
no tal ciclo da culinária, mas podia ter sido apresentado
no ciclo do "cinema erótico" ou mesmo num qualquer
ciclo sobre canibalismo, já agora. Mas porque não,
em vez disso, apresentar cinco obras de Peter Greenaway, como
se apresentou em duas ocasiões filmes de François
Truffaut? Porque se prefere arrumar os filmes por detalhes secundários,
com critérios tão fluídos?
Chegamos então à semana
do ciclo de cinema erótico, que deve ter justificado que
muitas rolhas de espumante saltassem, já que, ao que parece,
o público da TV2, ávido de cultura, ultrapassou
o público, religioso, da TVI. Não nos vamos debruçar
sobre o intragável «A Carne», de Marco Ferreri,
que já tinha sido anunciado para uma daquelas sessões
das três da manhã do Canal 1 (onde teria o seu lugar
natural) ou sobre a menoridade da «História d' O».
À partida, e inevitavelmente, o filme que chamava mais
a atenção, não só pela qualidade mas
pela "polémica" que o envolve, era «O Império
dos Sentidos», de Nagisa Oshima. Liga-se a TV2 e com o que
nos deparamos?
Eles estão a falar em francês!
Mas, eles são japoneses. O filme é falado em japonês.
É uma co-produção França/Japão,
mas o filme é falado originalmente em japonês, e
foi assim que foi transmitido da última vez pela RTP. Mas
qual é a lógica disto afinal? Porque carga de água
foi a RTP apresentar a versão francesa do filme? Pensarão que
não preferimos as vozes originais? É mais estético
japoneses a falar francês, para mais, com notórias
dificuldades?
Se acham bem apresentar filmes dobrados,
então, mal por mal, que os dobrem em português.
É este o canal da cultura?
Sim, este é o mesmo canal que
apresentou, num "ciclo Errol Flynn", ou algo assim,
a versão colorizada de «Captain Blood». Um clássico
esborratado por um processo odiado por todas as pessoas de bom
gosto, amantes de cinema. Um processo que levou Orson Welles,
no seu leito de morte, a clamar que afastassem "Ted Turner
e os seus lápis de cor" de «Citizen Kane»,
e James Stewart e Frank Capra a dirigirem-se ao Congresso dos
EU para que não adulterassem «It's a Wonderfull Life/Do
Céu Caíu uma Estrela». Quando muito, que se
transmitam filmes assim, para quem goste, em canais comerciais.
Fazê-lo no canal da cultura, sem dizer absolutamente nada
ao telespectador, é lamentável.
Por último, batendo na tecla
do costume, porque é que este, se é o canal da cultura,
das minorias e de outras coisas igualmente bonitas, transmite
aleatoriamente filmes em formato original ou ampliados/cortados,
em écran cheio? «Lawrence da Arábia» foi
um dos últimos casos patéticos, até porque
é um filme do qual abundam cópias vídeo restauradas
e em formato cinematográfico.
Se voltarmos desta feita ao "ciclo
oriental", constatamos a impotência editorial, a ausência
de critérios do canal. Porque é que filmes oscarizados
ou badalados na América - «Adeus, Minha Concubina»
e «Comer Beber Homem Mulher» - são apresentados
em pan and scan/écran cheio, e filmes que não fizeram
muito sucesso nesse país - os restantes, «Chungking
Express», «Papagaio de Papel Azul» e «A Tríade
de Shangai» - são apresentados em widescreen/formato
original?
Precisamos de critérios. Mudem
o raio do canal. Não basta retirar a publicidade comercial,
se a mentalidade é a mesma: um bloco de 10 minutos compacto,
impossível de assistir. Se se trata de divulgação
cultural o objectivo não é alcançado. Ouvir
três vezes seguidas "ele era louco por ela; ela era
louca por ele; ele ficou louco quando a mataram", num bloco
de 10 minutos de publicidade institucional, não só
aborrece quem espera pelo programa seguinte, como tem o efeito
contrário. Não contribui em nada para estimular
alguém a ir ver o filme português em questão.
A própria publicidade aos programas da estação
é idêntica à dos outros canais. Só
muda a programação. Seria difícil mais sobriedade?
Está-se a informar/divulgar ou está-se a querer
convencer as pessoas a comprar um produto?
Dêem-nos um canal de serviço
público, dedicado à cultura, com respeito pelo espectador
e pelos programas, especialmente filmes, que apresenta. Será
pedir muito?
19/7/97
P.S.: O formato em que «Chungking Express» foi apresentado não é, de facto, o original. As finas sombras negras, acima e abaixo da imagem, são os "mattes"/molduras das câmaras. (1/11/98)