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Caminho para Perdição/Road to Perdition
Realizado por Sam Mendes
EUA, 2002 Cor – 117 min. Anamórfico.

Com: Tom Hanks, Paul Newman, Jude Law, Jennifer Jason Leigh, Stanley Tucci, Daniel Craig, Tyler Hoechlin, Liam Aiken, Dylan Baker, Ciarán Hinds

Uma pequena cidade norte-americana, em 1931. Michael Sullivan (Hanks), homem de família, casado com Annie (Leigh) e com dois filhos menores, Michael Jr. (Hoechlin) e Peter (Aiken), trabalha para John Rooney (Newman), o mais poderoso gangster local e o homem que controla a cidade. Rooney trata Sullivan como a um filho, o que não agrada a Connor (Craig), o impulsivo e imaturo herdeiro do padrinho. Connor decide arranjar uma forma de se livrar de Sullivan, aproveitando o facto de Michael Sullivan Jr., ser descoberto a assistir ao trabalho sujo do pai. Sullivan vê-se forçado a fugir com o filho menor, perseguido pelos homens de Rooney e pelo impiedoso assassino-fotógrafo, Maguire (Law). Adaptado por David Self da graphic novel de Max Allan Collins, com desenhos de Richard Piers Rayner.

Três anos depois de «American Beauty», o consagrado realizador e encenador britânico Sam Mendes decidiu pegar num projecto substancialmente diverso, coordenando a transformação em filme de um “romance gráfico” – o tradutor optou por uma tradução que eu aqui havia considerado mais adequada (cfr. «Ghost World») do que “novela gráfica” ou outra variante, sendo mais fiel, ao mesmo tempo que atribui ao meio um certo respeito raramente conferido pelo grande público ou pela crítica bem pensante aos “bonecos”, aproximando-o da literatura não ilustrada (há que saber apreciar o conteúdo e não apenas a forma).

Mendes não desilude enquanto realizador, mas o resultado final é um conjunto de quadros e de momentos muito bem conseguidos, mas sem que a soma das partes resulte num conjunto particularmente coerente ou com uma fracção do relevo dramático ou impacto emocional do seu filme anterior. Existem segmentos inspirados, como a cena do reflexo de Connor, frente a Michael Jr., com relevo para a ilustração do interior da personagem, i.e., não sendo um mero floreado ou alguns dos momentos de confronto com o assassino, com uma situação que pareceu próxima de motivar um ataque cardíaco a uma pessoa da assistência. Por outro lado, sequências que em potência poderiam ser mais bem exploradas, como um tiroteio próximo do final – talvez inspirado em «Sonatine» de Kitano Takeshi – acabam por não ser totalmente bem sucedidas (a opção de trocar o som pela luz pode ser interessante, no papel, enquanto conceito artístico, mas faltaria mais qualquer coisa que nos convencesse que não se trata de um mero formalismo visual e que não despisse a cena de um elemento – o som – que lhe poderia conferir algum impacto). O assassino, encarnado por Jude Law, também exala um forte carisma, mas acabamos por vê-lo pouco, depois de uma introdução sugestiva e um par de cenas onde o vemos a “farejar” a sua presa. O desenvolvimento acaba por decepcionar um pouco, depois do interesse suscitado pelas primeiras cenas em que o vemos surgir e em que nos é dado a conhecer o seu hobby macabro.

O desequilíbrio narrativo-formal não se mostra muito vincado até perto do final, onde o filme assume contornos por demais moralistas, em contraste com o que até então tínhamos presenciado, i.e., uma obra madura sobre uma família destruída, num cenário de gangsters durante a lei seca americana. A lição que se tenta passar, de que temos que ser bonzinhos – “não sejas como eu!” – pode assentar bem ou mal, uma vez que há sempre o risco da incoerência de uma personagem que se apresenta como equilibrada e confortável com a sua existência, mas que, ao mesmo tempo, insiste em passar a mensagem ao “inocente” de que aquilo está tudo muito errado e que não é forma de ir para o céu (uma preocupação exacerbada pela importância do cristianismo, mesmo entre assassinos). Esta lição pode ou não ser coerente; acaba por depender do modo como se conta a história. O maior problema é ser demasiado déjà vu, provavelmente já antes do sacrifício de James Cagney, a pedido de um padre (novamente a religião), para evitar que um jovem, ainda não totalmente perdido para o crime, possa enveredar pelo bom caminho (abraçar Deus, almejar o Céu, a companhia dos anjos, etc.), podendo funcionar com uma narrativa equilibrada e com um desempenho convincente do “modelo”, o que sucedeu, por exemplo, com o recente «Insomnia» (2002), de Christopher Nolan, um filme que foi igualmente uma prova difícil para o seu realizador, sucedendo também a um grande sucesso de público e de crítica (no caso de Nolan, «Memento»).

Os actores são competentes, mas as personagens potencialmente mais interessantes – os vilões Connor e Maguire – acabam por ficar aquém do sugerido pelos primeiros actos do filme, com pouco tempo para se darem a conhecer. O “homem bom” de Hanks não trás nada de novo e o seu desempenho acaba por se traduzir num certo sonambulismo, mas não haveria muito mais para fazer com o papel. Em certos casos torcemos pelos “maus” da fita, o que pode suceder com alguns de nós perante o bonzinho Hanks, nesta obra de Mendes. Poderia ter sido apresentado como inseguro, vítima das circunstâncias e de más escolhas na vida, mas tal seria mais difícil de enquadrar com o “homem bom” e o “modelo” a seguir – todas as crianças admiram o pai, etc. – apesar de provavelmente ser mais coerente. De qualquer forma, não estamos num filme de Wong Kar-wai e o público reclamaria: “mas que raio de herói é este?”

***
classificações


Monumental-Saldanha 2. Relativamente bem focado (mas não perfeito), com som claro e distinto, mas restrito ao palco sonoro frontal.

Publicado on-line em 3/10/02.