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Ghost World – Mundo Fantasma/Ghost World
Realizado por Terry Zwigoff
Reino Unido/EUA/Alemanha, 2001 Cor – 112 min.

Com: Thora Birch, Scarlett Johansson, Steve Buscemi, Brad Renfro, Illeana Douglas, Bob Balaban, Stacey Travis, Charles C. Stevenson Jr., Dave Sheridan, Tom McGowan

Depois de terminarem o liceu, Enid (Birch) e Rebecca (Johansson) debruçam-se sobre o que vão fazer da vida, considerando arranjar empregos e arrendar juntas um apartamento, mas as realidades da vida adulta parecem querer afastá-las. Enid começa a passar algum tempo com Seymour, um coleccionador de discos antigos, sem vida social, enquanto Rebecca tenta levar mais a sério a sua “vida normal”.

«Ghost World» é a adaptação do “comic book” underground de Daniel Clowes, o qual co-escreve o argumento com o realizador Terry Zwigoff, conhecido pelo seu documentário sobre Robert Crumb. Tendo em conta o conteúdo substancial médio de um filme americano é fácil que um livro de banda desenhada tenha mais complexidade, a nível de personagens e de temas abordados, do que um filme. Aliás, hoje em dia, parece ser fácil que mesmo um jogo de computador possa ter mais impacto perante o consumidor, devido a todos os requisitos a que um filme se tem de submeter para ter financiamento e para ser considerado rentável e, por vezes, até apropriado para a audiência em questão, que leva a um progressivo snip snip snip, durante as suas fases de produção, que pode despojar projectos potencialmente interessantes de quaisquer vestígios de “alma”.

Uma maior seriedade e ambição estética e narrativa de conteúdos de BD costuma advir das chamadas “graphic novels”, com melhor qualidade de impressão e encadernação, menos limitadas formalmente do que a 9ª Arte de consumo rápido, com histórias de super-heróis de pijama, um “continua” no fim de 20 páginas e ausência de evolução narrativa relevante. Por cá, já alguém tentou traduzir o formato para “novela gráfica”, mas não me parece que funcione, pois não chamamos “novelas” aos livros convencionais, mas “romances”. A nossa língua tão rígida e rigorosa está cheia de impedimentos fonéticos; poucos dirão que andam a ler um “romance”, pois o termo soa a folhetinesco, apesar do conceito derivar de “linguagem popular” e não de romantismos, enlaces e desenlaces entre apaixonados, etc. De qualquer forma, se há quem ainda olhe para a banda desenhada como uma coisa infantil, serão provavelmente as “graphic novels” (que tal “romance gráfico” ou “livro gráfico”?) que mais facilmente ajudarão a iluminar os espíritos que confundem os meios e os formatos com os géneros e os públicos: há lixo e arte, conteúdos infantis e adultos, em todos os meios.

Apesar da história acompanhar duas adolescentes acabadas de sair do liceu – centrando-se sobretudo em Enid, a partir de certa altura – o filme (e o livro) não devem ser confundidos com o género muito popular da comédia americana de (e para) teenagers. A visão do mundo que se nos apresenta, tem os seus momentos de humor, mas é muito irónica, algo pessimista e consistentemente negra (apesar de algumas variações em tons de cabelo). Estamos muito mais próximo dos universos de Hal Hartley (menos) e de Todd Solondz (mais) do que qualquer “torta americana”.

Enquanto a realização de Zwigoff não interfere com o material, mantendo-se fria e sóbria, permitindo as espectador tirar as suas conclusões e decidir o que tem ou não tem graça – um método essencial no “deadpan” de Hartley ou Solondz – não se pode deixar de anotar algumas preocupações com o objecto “filme” que levaram a uma série de alterações em relação à história original. É natural que não se mantenha a progressão narrativa da BD, demasiado difusa, quase página a página, sem um fio condutor, e que se crie uma história com princípio, meio e fim (ainda que algo abstracto), repetindo elementos que apenas surgiam uma vez (as calças no chão, o homem na paragem de autocarro), de modo a caracterizar o particular universo suburbano, onde a acção se desenrola, e também que se adicione Seymour – manifestação do próprio Zwigoff, aparentemente –, mas o processo de adaptação não se absteve de declinar material mais forte (uma rapariga com cancro transforma-se em paralisada) ou algo polémico (o ex-padre católico que cria pornografia infantil virtual – uma personagem, sempre... actual?) Resta saber se houve sugestões do capital ou se os autores simplesmente consideram que o meio diferente mais facilmente poderia alhear uma parte significativa da audiência. Neste tópico, talvez se possa dizer que se há alguém que se está completamente nas tintas, esse alguém é Todd Solondz (vd. «Storytelling»).

Apesar das considerações acima feitas, não me parece que se formem opiniões radicalmente diferentes, consoante se tenha ou não lido a BD. «Mundo Fantasma» é um filme que aborda as dificuldades de integração no mundo dos adultos, por parte de duas adolescentes que nunca se integraram no mundo dos adolescentes. Todos os teenagers são “diferentes”, mas estas personagens certamente se integrariam num grupo apontado a dedo pela maioria como os “esquisitos”. Só que isto não é «American Beauty», nem há grandes preocupações com realismo, de forma que os que rodeiam Enid e Rebecca mais facilmente ignoram (em ambas as acepções do termo) o que elas dizem do que as marginalizam.

A tradução para português de «Ghost World» é particularmente censória, com quase 100% dos “palavrões” substituídos por palavras de seguro valor não ofensivo. Uma pratica instituída, mas inadmissível. Particularmente patético.

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Publicado on-line em 30/5/02.