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Insomnia
Realizado por Christopher Nolan
EUA, 2002 Cor – 118 min. Anamórfico.

Com: Al Pacino, Robin Williams, Hillary Swank, Maura Tierney, Martin Donovan, Nicky Katt, Jonathan Jackson, Paul Dooley

Will Dormer (Pacino) e Hap Eckhart (Donovan) são dois detectives de Los Angeles, destacados para ajudar a polícia da localidade de Nightmute, no estado do Alasca, a resolver o caso do violento homicídio de uma jovem do liceu local. Com alguma apreensão por parte dos polícias locais, a investigação inicia-se liderada por Dormer, sujeito à admiração da agente Ellie Burr (Swank), impressionada com o currículo do veterano detective. Dormer e Eckhart estão a ser investigados pelos Assuntos Internos, arriscando-se não só a sérias sanções disciplinares, ou mesmo à expulsão do corpo policial, como a ver postos em liberdade alguns dos criminosos por eles capturados. A progressão do caso complica-se com os problemas de Dormer, cada vez mais afectado pela sua incapacidade para dormir, numa altura do ano em que o sol não se põe. Baseado no thriller homónimo de 1997, realizado na Noruega por Erik Skjoldbærg, com Stellan Skarsgård.

O realizador britânico Christopher Nolan tornou-se célebre com o filme de culto instantâneo «Memento» (2001), que apresenta uma busca de vingança por parte de um homem sem capacidade de criar memórias novas, com uma narrativa que mergulha no passado, segmento a segmento, invertendo a lógica temporal, ou seja, começando do “fim” para o “início”. O seu primeiro filme, «Following» (1998), rodado em Londres, quase sem orçamento, constituiu um ensaio sobre manipulação temporal, apresentando uma história relativamente simples, em diversos momentos do tempo desordenados, mas sem a arrumação fluida ou o impacto do filme posterior. «Memento» deu-lhe acesso à “primeira divisão”, no que toca a grandes orçamentos e à utilização de estrelas como Al Pacino, Robbin Williams e Hillary Swank. Este é, obviamente, um filme de estúdio, para mais o remake de um filme “estrangeiro”, uma razão para ficarmos de pé atrás, já que Hollywood tem uma tendência quase inata para pegar em conceitos originais e dilui-los em formatos desgastados.

«Insomnia» poderia facilmente acabar por ser mais um thriller americano inconsequente, mas a mão de Christopher Nolan parece ter-se agarrado firmemente às rédeas, vincando-o com algumas marcas próprias. Não é um produto preocupado em chocar o espectador, enquanto tece artificiais teias de mistério e suspense, intricadas e “inteligentes”, na onda pós-«Se7en»; é antes um filme baseado nas personagens e não numa linha dramática que a elas se sobrepõe e que as controla.

Cartaz de Insomnia
Dormer – um trocadilho muito óbvio para os falantes de línguas latinas, mas mais subtil para os anglo-saxónicos – é um polícia veterano e orgulhoso dos resultados que tem apresentado ao longo dos anos. Mas está longe de ser moralmente perfeito, havendo cometido alguns erros no passado, tal como o colega Hap. Tal leva a uma investigação dos Assuntos Internos que pode conduzir ao fim da sua carreira. Hap pensa que colaborar com os AI será a melhor opção, mas Dormer sabe que eles precisam de apresentar resultados e liquidar um veterano como ele será irresistível. A piorar os efeitos psicológicos daí derivados, Dormer não consegue habituar-se ao sol da meia-noite e a sua condição física e psicológica degrada-se gradualmente.

O filme tem um par de viragens pouco usuais e que se evitam descrever neste texto. A primeira ocorre ainda cedo no desenvolvimento narrativo, durante uma perseguição no meio do nevoeiro e a segunda surge mais tarde, quando a investigação parece estar prestes a concluir-se, envolvendo contactos próximos entre o detective e o homicida. Nenhum dos peões deste jogo é apresentado como sendo particularmente genial; cada um deles detém uma inteligência “normal”, que fica tendencialmente de fora deste género de filmes, mais preocupados em impressionar a audiência. Cada um tenta defender os seus interesses, considerando-se moralmente correcto ou, pelo menos, considerando que é o melhor que poderia fazer dadas as circunstâncias.

O Dormer de Pacino poderá ter algum contacto com o Hanna de «Heat» (1995), mas aqui está mais contido (e ensonado), conseguido transmitir na perfeição a personagem perseguida por um passado manchado e convencida da necessidade dos actos cometidos em nome de um ideal de realização de justiça a qualquer custo. À medida que a narrativa se desenvolve – e nos envolve – Dormer vai-se questionando cada vez mais, até ter mais dúvidas do que certezas. Sendo certo que a conclusão já foi vista, aqui ajusta-se muito bem com o que vimos anteriormente. Pacino tem bons momentos de interpretação, individuais ou em interacção com Williams, Swank e Maura Tierney (a mulher no hotel). Robin Williams tenta fugir à sua imagem de marca e vemo-lo aqui inesperadamente contido, representando afinal um homem normal, que “teve azar” e pensa que não deve pagar por isso. Hillary Swank não tem propriamente um papel escrito para brilhar – mas, pelo menos, tem a oportunidade de aparecer com um ar mais feminino do que o habitual –, antes é acessória ao guião, sendo essencial para questionar as atitudes de Dormer e para precipitar o final.

O modo como as personagens estão escritas resulta numa trama perante a qual dificilmente podemos apontar erros ou “buracos”. A isto adiciona-se o excelso trabalho do elenco principal para nos sugerir estarmos perante pessoas reais e que as falhas que existem são deles e não do argumentista. Conseguimos assim esquecer estarmos perante um artifício cinematográfico e imergir-nos na história, suspendendo a incredulidade.

A fotografia de Wally Pfister, que trabalhou igualmente em «Memento», é deslumbrante, começando logo, durante os créditos iniciais, pelas vistas aéreas do Alasca (o filme em si foi rodado mais a sul, na Colômbia Britânica) – e a projecção, felizmente, esteve à altura. Nolan não jogou com um elemento formal externo ao texto como nos filmes anteriores, em que o tempo distorcido controla a nossa percepção da realidade; o elemento que domina o filme é o tempo, mas o outro: o Verão no Alasca e a luz constante, de dia e de noite, o nevoeiro, etc., mas este é um elemento substancial, incontornável, e que se nos apresenta de modo naturalista. Como se a história fosse acontecer de qualquer forma, simplesmente temos de lidar com esse elemento (como oposição ao tempo cronológico das obras anteriores, o qual acaba por constituir a própria forma como a história nos é apresentada). Filma-se com poucos artifícios, pelo menos sem que chamem a atenção sobre si. A subtileza da montagem, com a inserção de imagens que interferem com a consciência do protagonista adequa-se com a performance de Pacino, mas há um par de cenas que se podem destacar: a perseguição no nevoeiro e sobre os troncos flutuantes. É difícil descrever ao pormenor a técnica empregue, mas o modo como Pfister e Nolan fotografam e compõem o filme, junto com o trabalho do som e a cuidada montagem, conseguem conferir uma sensação de exasperação permanente, fazendo-nos sentir a dureza das rochas sobre as quais as personagens correm (imaginamos uma queda, ossos partidos, e arrepiamo-nos com a eminência de tal possibilidade), podendo o mesmo ser dito em relação à corrida sobre os troncos, onde é mais eficaz o suspense do que propriamente o desenvolvimento. É também refrescante que um bom thriller consiga construir uma atmosfera envolvente contrariando o ingredientes “obrigatórios” da noite e da chuva constante.

É verdade que há cedências aos mecanismos de Hollywood, como a necessidade quase incontornável de uma cena de “acção” para rematar o filme, mas não se sente particular incongruência, apenas que os resultados seriam bem melhores se se procurasse um clímax mais emocional, baseado nas excelentes personagens e não nas armas que transportam.

«Insomnia» é um bom filme, mas, uma vez que não vi o original, não poderei fazer um julgamento pleno. Ao que parece, extrapolou-se o argumento original sem grandes “traições”, tendo-se aligeirado um pouco alguns elementos (como o referido final). É sempre pena constatar a aparente impossibilidade de vermos um filme Norueguês estrear numa boa sala de cinema nacional, mas que tal seja automático se se tratar de uma história similar, vinda de Hollywood e com nomes importantes a encabeçar o elenco. Resta-nos esperar que Christopher Nolan não se renda ao sistema, limitando-se a trabalhar como realizador de aluguer, antes aproveite o sucesso comercial para fazer outros filmes pessoais. De qualquer forma, se todos os thrillers de Hollywood fossem assim, estaríamos muito bem servidos.

****
classificações


Monumental 4, imagem extraordinariamente bem focada, som claro e distinto, mas sem notórias manifestações dos canais de surround.

Publicado on-line em 08/9/02.