cartaz
comentários
coluna
secção informativa
favoritos
arquivo
pesquisa

index

Resident Evil/Resident Evil Genesis
Realizado por Paul W.S. Anderson
Alemanha/Reino Unido, 2002 Cor – 100 min.

Com: Milla Jovovich, Michelle Rodriguez, Eric Mabius, James Purefoy, Martin Crewes, Colin Salmon, Ryan McCluskey, Oscar Pierce, Indra Ové, Anna Bolt

Nas instalações de alta segurança, conhecidas como Colmeia, propriedade da empresa de biotecnologia Umbrella, situadas no subsolo da cidade de Racoon, um virus aparentemente mortal é solto e o sistema informático decide isolar totalmente a área. Alice (Jovovich) acorda, amnésica, caída sob o chuveiro, na mansão à superfície, sendo, pouco depois, cercada por uma equipa de intervenção rápida, que tentará resolver a situação de crise. Inspirado no célebre jogo japonês com o mesmo nome, «Resident Evil» prossegue com um esperado combate mortal entre um pequeno grupo de humanos e um vasto grupo de zombies, de diversas espécies.

É, no mínimo, irónico que a trilogia dos zombies de George A. Romero tenha sido talvez a mais relevante fonte de inspiração para a criação do jogo “Resident Evil”, que o realizador tenha tido o projecto das mãos, mas que tenha acabado por ser afastado devido à sua visão não ser a mais adequada. Paul Anderson, um tarefeiro que tem demonstrado algum talento para filmar horror («Event Horizon», 1997), mas que ainda não teve a oportunidade de o provar num filme plenamente válido, coerente e incomprometido, foi incumbido de executar o que será provavelmente o primeiro tomo de uma série.

«Resident Evil» consegue sintetizar razoavelmente a linguagem visual dos videojogos com o do cinema de acção (não propriamente o de horror, como se desenvolverá mais abaixo): o arranque do filme é um típico “você está sozinho(a) num quarto e vê os seguintes objectos...”, que reproduz a premissa de muitos jogos de aventura, que nos exigem descobrir segredos, abrir portas, gerir os mais diversos utensílios, para a realização do objectivo final. E, claro, no que toca ao subgénero em questão, matar muitos zombies. Anderson prossegue com a utilização parcimoniosa de planos com pontos-de-vista das câmaras de vigilância, que são os olhos da “Rainha Vermelha”, e que constituem também um must destes jogos.

Paul Anderson, além de conhecer e apreciar a obra de Romero – e é pena que alguém seja tão reverenciado e não tenha oportunidade, hoje em dia, de realizar filmes, com um mínimo de liberdade criativa – é também um fã de gore italiano e de giallo. «O Enigma do Horizonte/Event Horizon» apresentava algumas sequências góticas reminiscentes de Fulci, apesar de terem acabado por ser transformadas numa montagem semi-subliminar. Ao contrário da generalidade dos filmes (verdadeiramente) gore feitos nos anos 80 em Itália, o cinema americano tem a vantagem de assentar numa história coerente, com princípio meio e fim, ainda que, na maior parte dos casos, constitua o bocejo do costume. Aqui não estamos propriamente perante uma produção norte-americana, mas é nesses meandros narrativos que nos inserimos e é o seu sistema de classificação que tem a palavra final sobre o aspecto visual deste filme, i.e., a ausência de sangue e gore, outrora marcas registadas dos filmes do género, mesmo aqueles made in USA.

Milla Jojojojojovich
Não é, certamente, um dos defeitos de «Resident Evil».
O realizador mostra-se confortável com a necessidade de entregar contratualmente um filme “não aconselhável a menores de 17” (que permite a entrada de toda a miudagem, incluindo crianças de colo, desde que os papás os acompanhem) e com a consequente necessidade de medir ao milímetro a violência que pode ser apresentada no ecrã, sugerindo que o filme foi assim concebido desde o início. No entanto, tal não parece evitar a existência de “sequências gore sem gore”, como logo no início, em que um elevador sobe e desce e depois (nada). Na revista francesa Mad Movies, Anderson comenta a técnica de Paul Verhoeven, de aborrecimento mortal da MPAA, enchendo um filme com níveis insuportáveis de gore, levando a que a distinta instituição mande cortar parte da violência, mas deixe imensas cenas que noutro filme poderiam ter de ser removidas. É irónico que Anderson refira que tal técnica tem a desvantagem de dar origem a uma montagem incoerente, devido à necessidade de substituir as imagens censuradas com planos alternativos, de reacção, etc., pois «Resident Evil» não deixa de transmitir essa mesmíssima sensação, por exemplo, na cena em que Alice e um companheiro amnésico de repente saltam de uma cena de diálogo para uma entrada em correria noutra sala, perseguidos por zombies. Qual será dificuldade em conceber uma versão integral, para a Europa, e deixar a MPAA retocá-la em algo mais adequado para os standards americanos? Há uns anos atrás percebia-se menos; hoje em dia as expressões “Director's Cut” ou “Edição Especial em DVD” poderão dar uma pista.

«Resident Evil» é um filme tecnicamente competente e quanto a isso não há muito a dizer, excepto talvez salvaguardando o que diz respeito à montagem, que sugere a remoção de cenas de violência ou a necessidade de obviar o tempo do filme. Está bem filmado, sem exageros estilísticos e os efeitos necessários, a ilustrar o guião, são competentes, excepto algumas partes com uma criatura digital, devido às limitações que ainda vão existindo com o meio.

Os cães-zombie fazem parte de uma cena que consegue criar algum medo, com base na concepção e na maquilhagem posta sobre os animais. Muito gótico-pictórico. Infelizmente a resolução é mais tipo “cena de acção”, do que propriamente o levar o medo e o desespero pela sobrevivência até ao limite, colocando os nervos do espectador à flor da pele. O mesmo sucede com algumas cenas de confronto com grupos de zombies, pelo menos uma em particular, em que se cria essa atmosfera claustrofóbica, de não haver saída, mas depois se entra num momento de “porrada”, com música de forte batida a acompanhar. Ou seja, não procura criar o medo, antes convida a abanar a cabeça e festejar a “morte” das criaturas, com uns gritos de “fixe!”

Não estamos propriamente no território de «Dawn of the Dead» (1978), nem sequer de «Return of the Living Dead 3» (1993), mas, se por um lado é de aplaudir o tom quase sempre sério do filme – apenas com uma ou duas piadas irritantes e desajustadas à tensão das situações – também se lamenta que não se tenha ido mais longe, construindo um verdadeiro filme de horror, um género que é suposto provocar reacções mais fortes. Não estou a defender a violência pela violência – quando é “gratuita” mais facilmente provoca o riso – mas a coerência: se o filme trata de zombies, criaturas com impulsos primários que comem carne humana, é natural que se veja um pouco de carne e um pouco de sangue, mesmo que não se optem por grandes planos gratuitos de massa cerebral a ser sugada, dedos a serem debicados, entranhas dependuradas, etc. Um dos momentos de maior violência física em «Resident Evil» recorre a lasers, de modo a que os efeitos sejam o mais limpos possíveis (assumido por Anderson). Aqui, uma vez mais, se prepara o espectador para ver a consequência de algo, mas depois a câmara mexe-se ou o objecto sai de foco, algo que, ironicamente (?), não sucede, por norma, em jogos de computador. Acrescente-se que a referida cena é uma referência/colagem [riscar o que preferir] à mais emblemática morte de «Cube» (1997), onde o espectador é presenteado com um eficaz “despedacinhamento”.

A história, relativamente simples, de «Resident Evil» é polvilhada por mais algumas referências. Desde logo nos lembramos de «Aliens», apesar de Milla Jovovich estar vestida “contra-tipo”, mais para o sexy – aliás, esse aspecto é reforçado e pode-se dizer que funciona, bem, bem – e até temos uma moça hispânica durona (cliché ou coincidência?) O computador omnipresente pode fazer lembrar «2001: Odisseia no Espaço» (1968), mas convenhamos que este mecanismo é quase incontornável num cenário futurista desta natureza. A obra literária de Lewis Carroll é também referenciada (Alice, a "toca", o coelho branco, rainhas a pedir decapitações, a própria imagem humana do computador, etc.), mas é mais de um modo “so what?”, já que não parece que enriqueça de algum modo o filme. É verdade que a estrutura do filme não anda muito longe de «Fantasmas de Marte» (2001), de John Carpenter – candidato a filme de culto metálico – também é verdade que os clichés são preexistentes e que a utilização do comboio é um mecanismo vulgar em jogos de computador, como meio de passar de nível, i.e., para transportar o jogador de um cenário para o outro, enquanto se mostra mais uma bonita sequência de vídeo.

Em termos de coerência narrativa com os jogos, o filme procura ser uma “prequela”, uma opção que permite liberdade quase total para a escrita do guião. O segmento que encerra o filme é muito pouco natural – certamente cozinhado como método de chegar a um plano final que já devia estar pensado antes do resto do filme começar a ser escrito – e uma desculpa para que a menina Jovovich se possa passear durante mais alguns momentos com pouca roupa (a propósito disto, Anderson nega que se tenha aplicado censura digital a certas partes do corpo dela.) Este final consegue invocar a sensação de termos acabado de ver um vídeo introdutório a um jogo de computador, mas, infelizmente, quando procuramos o joystick e nos preparamos para rechaçar as criaturas, tomamos consciência que em vez disso temos é que mexer o traseiro dali para fora o quanto antes, porque já se faz tarde.

**1/2
classificações


Monumental 4: imagem focada, som claro e activo. Projecção não rigorosa, com uma faixa inferior destapada (um facto talvez incontornável devido à legendagem mal colocada), mas sem efeitos secundários perniciosos.

Publicado on-line em 27/7/02.