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Embriagado de Amor/Punch-drunk Love
Realizado por Paul Thomas Anderson
EUA, 2002 Cor - 95 min. Anamórfico.

Com: Adam Sandler, Emily Watson, Philip Seymour Hoffman, Luis Guzmán, Mary Lynn Rajskub, Lisa Spector, Julie Hermelin, Karen Hermelin, Hazel Mailloux, Nicole Gelbard

Poster Punch-drunk Love
San Fernando Valley, sul da Califórnia. Barry Egan (Sandler) dirige um armazém de venda de acessórios de casa de banho. Barry é um indivíduo tímido e neurótico, que tem dificuldade em socializar, mesmo na companhia das suas sete irmãs, que gostam de recordar como o humilhavam em criança. Barry conhece Lena (Watson), quando esta deixa o carro na garagem ao lado do armazém. Ele entusiasma-se, obsessivamente, com a possibilidade de se aproveitar de uma promoção de uma marca de doces, para coleccionar milhas aéreas, que lhe permitirão viajar gratuitamente durante o resto da vida, bastando para tal realizar um considerável investimento em pudim.

Depois de uma primeira obra com menor impacto e mais low-profile, «Sydney» (1996), desenvolvida com o apoio do Instituto Sundance, mas de certa forma comprometida pelo estúdio que o viria a produzir – que, desde logo, impôs o mais sonante título «Hard Eight» – Paul Thomas Anderson filmou dois dramas épicos, com narrativa densa e uma complexa rede de personagens: «Jogos de Prazer/Boogie Nights» (1997) e «Magnolia» (1999). O realizador, conseguiu, com o seu segundo filme, obter algo que a maioria dos veteranos de Hollywood, não conseguem mesmo depois de uma longa carreira: o direito ao final cut dos seus filmes, ainda que com compromissos mínimos derivados das leis do mercado (em «Boogie Nights» foi-lhe dado a escolher entre a classificação NC-17, para adultos, que permitiria manter algumas cenas de sexo mais fortes, ou a duração de três horas). Depois das dificuldades decorrentes da produção dessas duas obras, Anderson anunciou ir dedicar-se a algo mais simples: uma comédia de 90 minutos. E com Adam Sandler.

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Uma manhã que começa de modo surreal.
Numa primeira análise ao conceito referido no final do parágrafo anterior, poderíamos de imediato esperar o cenário mais negro: o filme não iria agradar aos que seguiam o cinema de Anderson e muito dificilmente seria apreciado pelas audiências de centros comerciais que elegeram Sandler como um excelente acompanhamento dos seus baldes de pipocas. De um modo geral, foi o que sucedeu: o entusiasmo crítico foi moderado, e, no fim de contas, «Punch-drunk Love», não se revela exactamente como “uma comédia de Adam Sandler”, como PT Anderson o havia anunciado – com alguma ironia, supõe-se. Trata-se, sim, do retrato amargo de um indivíduo desligado do mundo que o rodeia, algo que somos levados a crer ter origem no facto de ser o único rapaz numa família que educou outras sete crianças, todas raparigas. Barry cresceu cercado pelo domínio do sexo feminino, algo que Anderson ilustra com os diálogos no presente, ao invés de recorrer aos mais convencionais flashbacks. Estas reminiscências, constituem, aliás, alguns dos momentos mais incómodos do filme, com a personagem de Adam Sandler visivelmente afectada e procurando manter o controlo, enquanto sentimos o tictactear do seu sistema nervoso, qual bomba-relógio emocional. Esta é uma justificação fácil de apresentar, ainda que Anderson não esteja interessado em conceber uma narrativa complexa, reflectindo sobre causas e efeitos de depressões profundas ou em entrar no campo da psiquiatria clínica. Barry é como é, tem sérios problemas de integração social, bastando isso para que a audiência siga a história, entendendo as suas dificuldades perante algo tão simples, para o comum dos mortais, como sair com uma mulher que poderá estar interessada numa relação séria.

Tudo pode correr mal, e as coisas mais simples são amplificadas pela neurose de Barry, que pode levá-lo a comportamentos obsessivos, a fugir sem razão aparente, ou a actos de violência irreflectida, como a destruição de vitrinas ou casas de banho (compreendamo-lo: quem é que nunca encheu as mãos de sabonete líquido e depois carregou na torneira repetidamente sem que a água se dignasse a sair?) São estes comportamentos que caracterizam uma invulgar personagem de uma “comédia romântica” (qué?), responsáveis pelo alheamento de boa parte da audiência. É certo que partir para a projecção do filme com tal definição na mente poderá dar azo a algumas desilusões. Por outro lado, esperar «Magnolia 2», mas com metade da duração, não seria muito realista; é como comprar um Abtronic (tm) por €99,99, seduzido pela promessa de ficar em plena forma sem esforço algum, sentado no sofá, a ver TV e a despejar latas de cerveja (light, claro).

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Elizabeth (Mary Lynn Rajskub, à esquerda) procura convencer o irmão Barry a sair com Lena.

«Punch-drunk Love» é mais um drama do que uma comédia. Não é um filme a ver passivamente, antes exige algum interesse e motivação por parte da audiência, pois continuamos dentro do universo cinematográfico de PT Anderson. Os “choques” emocionais ou violentos pelos quais muitas vezes mais facilmente nos lembramos dos seus filmes anteriores, e que marcam uma viragem no rumo das personagens, não têm a mesma grandiosidade aqui. Sendo um filme mais pequeno, estes momentos de viragem emocional das personagens são ilustrados por acidentes de automóvel, sendo um deles filmado com um misto de perigo e poesia. É esteticamente belo, mas, ao mesmo tempo, sentimos receio pelas personagens, não só pelo facto em si, mas pelo que esperamos que se poderá seguir, durante os segundos em que o tempo se parece suspender.

O realizador, um dos poucos a trabalhar actualmente em Hollywood compondo o enquadramento 'scope com recurso a lentes anamórficas, ao invés de recorrer ao mais video-friendly Super35, com um olho no formato televisivo (antigo), é um virtuoso visual, mas não deixa que a estética se sobreponha ao texto ou ao sentir das personagens. A câmara à mão e o uso da steadycam não surgem apenas porque fica bem, porque é modernaço, mas porque se ajustam ao que o realizador quer transmitir. Um bom exemplo do virtuosismo de Anderson é o plano-sequência dentro do armazém, em que Barry é impelido pela irmã para sair com Lena, em que ele entra e sai do escritório, perseguido pela câmara, e o seu nervosismo crescente é acompanhado pelo modo de filmar. É um dos momento raro no cinema moderno em que se consegue fazer o espectador partilhar o stress ou desespero da personagem.

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Acresce que a galeria de secundários não tendo necessariamente o desenvolvimento individual que teria num dos épicos de PT Anderson – onde se torna mais difícil distinguir quem são realmente os secundários – permanece interessante e bem delineada, ainda que as várias personagens não tenham muito tempo de ecrã. Tal é mais notório com Philip Seymour Hoffman, do que com Luiz Gusmán, dois dos favoritos do realizador – mas de Guzmán só se espera que faça de Guzmán. Emily Watson é também uma personagem acessória, mas credível. Não estamos um bocadinho fartos das mulheres bonitas descartáveis, prontas a serem conquistadas pelo actor principal?

*****
classificações


Monumental-Saldanha 5.

Publicado on-line em 27/4/03.