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Mulholland Drive/Mulholland Dr.
Realizado por David Lynch França/EUA, 2001 Cor – 146 min. Com: Justin Theroux, Naomi Watts, Laura Elena Harring, Ann Miller, Dan Hedaya, Mark Pellegrino, Brent Briscoe, Robert Forester, Katharine Towne, Lee Grant
Rita (Harring), procura a memória perdida, ao mesmo tempo que tenta perceber porque é que alguém anda à sua procura, com intenções de a matar. Betty (Watts), uma jovem mulher recém-chegada a Los Angeles, com intenções de se estabelecer como actriz, vai ajudá-la na investigação. Adam Kesher (Theroux) é um realizador de cinema a quem é imposta uma actriz para o papel principal do seu novo filme. A recusa tem consequências drásticas no seu bem-estar físico e económico. Mistérios insondáveis da mente humana – de Lynch ou de uma das suas personagens – envolvem o principal fluxo narrativo, adicionando ingredientes como um estranho cowboy, um night-club que, numa aparente redundância, encena o artificial ou sonhos de outrem, sobre o terror escondido nas sombras das traseiras de um café.
Lynch resistiu o que pode, mas concluiu que o “controle criativo” que lhe era atribuído por contracto, vinculava a produtora, mas não a ABC, a qual poderia recusar o produto ou exigir alterações. Na prática, não detinha o “final cut”. Assim, mesmo depois do realizador efectuar uma montagem em que sentiu estar a trair a sua obra – consolado com a recuperação do material extirpado no desenvolvimento da série – a ABC viria a rejeitar o piloto, considerando eventualmente transformá-lo num telefilme, além de o projectar em salas de cinema europeias (algo que estava previsto inicialmente no contrato).
O descalabro do projecto ocorreu por altura da exibição de «The Straight Story» (1999) em Cannes. Os produtores franceses desse filme, Alain Sarde e Pierre Edelman, viram o piloto de “Mulholland Drive” e quiseram transformá-lo num filme, reunindo para tal mais 7 milhões de dólares. Sob a asa da Studio Canal, que adquiriu os direitos, Lynch revisitaria a história dois anos depois, acrescentando cenas, voltando a filmar outras e concebendo uma conclusão inteiramente nova. O filme estreou nos EUA distribuído pela Universal.
(O texto precedente foi elaborado com referência a um extenso artigo de Tad Friend, na revista New Yorker.)
Apesar dos contratempos em redor da criação de «Mulholland Dr.», o objecto finalizado para projecção em salas de cinema (e já com DVD a sair nos EUA na altura, tardia, em que escrevo estas linhas) não denota a existência de quaisquer espécie de “remendos”. O estilo narrativo de David Lynch, fundado numa lógica que se recusa a distinguir o real do imaginado, aliado a uma estrutura que subverte a lógica linear temporal, polvilhado por flashbacks e flashforwards, visões, pesadelos, sonhos dentro de sonhos e abstracções sem aparente resolução, mostrou ser o ideal para tal conversão.
Depois de «The Straight Story», um filme onde não há nada para ler nas entrelinhas, personagens perdidos nos cantos escuros da própria psique ou mulheres estranhas, preparadas para cantar de dentro do motor de cortadores de relva, Lynch regressa ao noir surreal de «Lost Highway», com o qual este «Mulholland Dr.» tem algumas semelhanças temáticas. A aparente impenetrabilidade do argumento resulta mais da desistência do espectador, eventualmente aborrecido com a lenta exposição, do que com uma real aleatoridade ou com “Lynch a armar-se em Lynch”. O levantar pleno da cortina também pode não ser desejável, pois o realizador prefere despejar pistas atrás de pistas, para que o espectador as recolha e tente formar a sua própria visão (coerente?) dos acontecimentos. No final, em vez de clarificar, Lynch deixa-nos a reflectir sobre o que vimos, enquanto tentamos amarrar o maior número de pontas soltas.
A semelhança mais notória que podemos apontar em relação a «Lost Highway» prende-se com uma personagem, presa dentro do labirinto da sua própria consciência e negando actos criminosos cometidos contra a pessoa amada, depois de concluir pela impossibilidade da relação amorosa. Através de mecanismos psicológicos (ou psicóticos), eles fogem da realidade, criando (?) uma alternativa mais positiva dos acontecimentos, dentro da qual tentam lutar, a custo, por um final feliz, sem que, no entanto, consigam evitar a repetição traumática do real ou o despertar para a realidade, com o despedaçar da fantasia. Se o jazz do filme anterior sugeriu ao distribuidor francês a bonita expressão “fuga psicogénica” (que tecnicamente não será “criação/génese pela mente”, apesar de tal significado se ajustar que nem uma luva), aqui poderemos propor o termo “psicastenia” (caracterizado por obsessões e perda do sentido da realidade), como modo de caracterizar, de forma redutora, o estado mental de uma das personagens.
«Mulholland Dr.» pode-se reduzir a uma história directa e coerente, depois de efectuadas as ligações entre dois segmentos claramente definidos no filme: antes e depois da caixa azul. Aos leitores que ainda não viram o filme recomenda-se que parem por aqui a leitura do texto e que voltem mais tarde, se se lembrarem. Se não quiserem arriscar um “scrool down” para ver a redutora classificação, adiantam-se já aqui o óbvio:
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A linha base da história pareceu-me mais ou menos clara, mas um ou outro pormenor poderá ter sido focado depois da leitura de outros textos, no meio das mais esotéricas dissertações. Depois de certo ponto, torna-se difícil distinguir as nossas próprias memórias, daquilo que absorvemos num momento posterior no tempo, quando as tentávamos alcançar (assim um pouco como o déjà vu).
Diane Selwyn, depois de ganhar um concurso de dança na sua terreola (Deep River, Ontario), viaja para Los Angeles, onde subsiste com a ajuda do dinheiro herdado pela morte de uma tia. Quer tornar-se actriz e começa a participar em audições, mas o seu talento não é muito grande ou talvez não tenha muita sorte. Durante uma audição conhece Camilla Rhodes, pela qual se apaixona e com quem mantém uma relação. No entanto, enquanto as coisas correm mal para Diane, Camilla começa a tornar-se uma estrela de cinema, envolve-se com um realizador e decide por termo à relação entre as duas. Diane, já depois de ter sido abandonada, acaba por ser humilhada numa festa, um método muito pouco simpático escolhido por Camilla para forçar a ex-namorada a aceitar que a relação é irrecuperável. Desesperada, Diane contrata um assassino que mata Camilla. Corroída pela culpa, Diane imerge numa fantasia onde reescreve os factos, em busca de uma história feliz, ao lado de Camilla, mas acaba por perder a luta com os seus demónios internos e suicida-se.
Arrependida ou apenas atormentada pela culpa (como Fred Madison de «Lost Highway»), Diane vive uma fantasia onde Camilla escapa à morte, podendo assim ter uma segunda oportunidade a seu lado. Para que tudo comece de novo, Camilla tem de perder a memória, tornando-se uma pessoa por definir, com a ajuda de “Betty”. O dinheiro está na sua posse, como forma de Diane apagar o pagamento ao assassino, que, no entanto, continua à sua procura. No sonho, uma mulher anda à procura da memória, enquanto a outra procura o esquecimento. Sabemos que Diane poderá não ser a melhor das actrizes – pelo menos não é bem sucedida, tendo conseguido alguns papéis devido a influência de Camilla –, mas, no seu sonho, as coisas são necessariamente diferentes: ela é brilhante, sendo de imediato descoberta por uma agente que lhe dá uma grande oportunidade (e aqui é ela que dá a mão à “desorientada” Camilla/Rita), a qual ela até se dá ao luxo de desprezar, abandonando o local da audição, porque Rita está à sua espera. Entretanto, temos a conspiração e o envolvimento de gangsters que obrigam Kesher, o realizador, a usar “Camilla Rhodes” como protagonista do seu filme. Além de um possível comentário de Lynch ao sistema de Hollywood (e a ABC também não gostou da escolha das protagonistas de “Mulholland Drive”), isto representa uma justificação fantasiosa de Diana, ao facto de que, na vida real, Camilla progride na carreira enquanto ela é preterida.
O Club Silencio é o quebrar das ilusões. Rita e Betty assistem a um espectáculo onde se afirma que não há banda, a música é gravada; tal reflecte o carácter irreal do que temos estado a ver. É marcante a cena em que vemos uma mulher a cantar, sabemos que é playback, mas ainda assim surpreendemo-nos quando ela cai no chão e a canção continua a ouvir-se. Sabemos que não é real, mas continuamos a resistir. Há aqui uma referência a “La Llorona”, um mito mexicano que datará do tempo dos Aztecas e cuja história parece variar consoante as fontes, mas que, numa das versões, fala de uma mulher que matou os filhos por ciúmes do marido que a desprezou, vindo a suicidar-se, perseguida pela memória dos seus actos. Diz a lenda que se ouve o choro do seu fantasma, nas margens do rio onde ela se matou. Uma história não totalmente diferente da de Diane e que poderia sugerir que estamos perante memórias e fantasias do seu espírito. Mas faz mais sentido, em concordância com a obra e o imaginário de Lynch, assumir-se uma linha mais racional, quebrada pelas fantasias de uma mente atormentada em luta com demónios que só existem no interior da mente, i.e., não há aqui lugar para o sobrenatural.
Há um casal idoso que surge no início e no final do filme. Vemo-los também durante os créditos iniciais ao lado de Diane. Há quem os aponte como pais ou avós dela, o que é uma possibilidade, mas parece-me que poderiam ser perfeitamente os jurados do concurso (talvez os presidentes do Grupo Recreativo e Cultural de Deep River) que lhe permitiu a viagem para LA. Faria assim sentido que ela os transformasse numa espécie de anjos que a conduzem ao paraíso (acompanham-na no avião e apresentam-na à cidade), mas, no final, revelam-se como os demónios que a levam ao suicídio. Ou seja, a sua ultima aparição sugere que afinal a levaram ao inferno. Esta verdadeira “identidade” do casal é revelada no início, com o seu riso doentio e verdadeiramente tenebroso, dentro do carro; uma pista oferecida bem cedo, a sugerir que as coisas não são o que parecem ser.
Publicado on-line em 7/4/02.
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