A Realidade em «Mulholland Dr.»

Nota prévia: este texto aborda os momentos finais
de «Mulholland Dr.» e presume que o leitor viu o filme
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Fig. 1 e 2 - Isolando o sonho: o início e o final.
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Fig. 3 e 4 - Dormindo no sonho e despertando na realidade. O Cowboy (fig. 2) surge entre os dois planos.

Para alguns, «Mulholland Dr.» reduz-se inteiramente a um sonho, para outros "é interessante, mas não faz muito sentido." Não será propriamente o caso e, na sequência do comentário ao filme, que inclui já uma possível “decifração” genérica do enredo, agora com o DVD nas mãos, ocorreu-me elaborar uma espécie de storyboard, ilustrando e clarificando o segmento que contém a secção "realidade" do filme - tempo presente e flashbacks -, que vem interpretar o que vimos nas duas horas precedentes sob uma luz completamente diferente. Este exercício poderá ser mais curioso do ponto de vista estético, do que intelectualmente enriquecedor, mas talvez assim possa agradar também àqueles que reclamam que o site tem demasiado texto e poucas ilustrações.


Um sonho inicia-se imediatamente antes de começarem os créditos, com um mergulho da câmara sobre uma almofada (fig. 1). O sonho acaba quando o Cowboy surge na entrada do quarto de Diane e diz “hey pretty girl, time to wake up (fig.2), a porta do quarto fecha-se, ouve-se o bater na porta da rua e há um “fade in” horizontal, da direita para a esquerda, revelando o corpo de Diane na cama (1 hora e 57 minutos no filme).

Batem à porta insistentemente. Diane veste um roupão branco, levanta-se e abre a porta à vizinha que quer algumas coisas que deixou no apartamento, depois da troca efectuada 3 semanas antes.

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Fig. 5, 6 e 7 - A vizinha recupera os seus objectos, incluindo um cinzeiro. A chave azul dada pelo assassino, encontra-se sobre a mesa.
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Fig. 8, 9 e 10 - Diane imagina, por breves segundos, o regresso de Camilla.

Tanto a imagem do corpo que Betty e Rita descobrem, como o próprio corpo que vemos quando o Cowboy abre a porta (fig. 3), fazem parte do sonho de Diane. O Cowboy a acordá-la é integrado no sonho com a chamada da realidade, através do bater ininterrupto na porta. Só a última imagem de Diane na cama pertence já ao mundo real (fig. 4).

A vizinha de Diane leva um cinzeiro, que estava em cima da mesa da sala (fig. 5), e uma caixa com pratos. Em cima da mesa está uma chave azul (fig. 6). O assassino (fig. 7) disse que a entrega da chave representaria a confirmação do serviço contratado, i.e., a morte de Camilla. A vizinha refere que dois detectives voltaram a procurar Diane, o que significa que querem interrogá-la sobre a morte ou talvez tão só sobre o desaparecimento de Camilla (ou não encontraram o corpo ou não têm elementos que indiquem a culpa de Diane; de contrário entrariam por ali adentro). Depois da vizinha sair, Diane prepara um café. Momentos depois, vê Camilla à sua frente - com o vestido que usava na noite em que declarou o final da relação -, mas trata-se de uma alucinação da sua mente debilitada e dura apenas alguns segundos (figs. 8 a 10).

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Fig. 11 e 12 - Transição do tempo presente para o flashback: a chave não está lá, o cinzeiro ainda não foi recuperado.
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Fig. 13 e 14 - Rejeição e separação. Note que o vestido de Camilla é o mesmo da fig. 8.
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Fig. 15 - Diane hesita ir à festa. O candeeiro assinala o seu envolvimento na tentativa de homicídio de "Rita". Fig. 16 - A "consolação" de Coco.
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Fig. 17 - A Camilla da fantasia com a verdadeira Camilla. Fig 18 - A audição da Camilla substituta.


os flashbacks começam (fig. 12)

Diane leva o café para o sofá. Aqui insere-se um flashback, quando Diane sai do enquadramento pela esquerda e a câmara passa por cima do sofá, revelando Camilla deitada, semi-nua (fig. 11 e 12). A sequência contínua pode parecer desconcertante à primeira vista, mas note-se como Lynch cuidadosamente mostra as diferenças entre o tempo presente e o flashback: no plano seguinte, Diane surge com calções de ganga, que obviamente não tinha antes, e, na mão, já não tem uma caneca com café, mas um copo, talvez com água. Importante: na mesa está ainda o cinzeiro (a acção passa-se no período de três semanas, depois da troca de apartamentos e antes de Diane “desaparecer”) mas não a chave azul. Logo, não se trata de um sonho ou uma visão, mas um de flashback “puro”. Isto é bastante claro, em particular num segundo visionamento, pois existem zooms lentos até à chave azul e ao cinzeiro, no presente, e até ao cinzeiro (e à não-presença da chave) no flashback. Em seguida, assistimos à rejeição e à recusa de Diane em aceitar as coisas pacificamente (fig. 13 e 14).

Antes de Camilla sair, há um flashback dentro do flaskback, que nos leva até ao local da rodagem de um filme, onde vemos como Camilla mantém paralelamente - ou inícia alí - uma relação com Adam Kesher. Também é clara a sua satisfação em fazer Diane sofrer, insistindo para que ela assista ao "ensaio". O seu comportamento durante o jantar, quando "flirta" com Kesher ou com a outra mulher (a Camilla Rodhes do sonho - fig. 17 e 18), vem reforçar o sadismo de Camilla. A relação com Adam Kesher poderá ser menos relevante do que se sugere; tanto quanto sabemos pode-se tratar de um simples esquema de Camilla para repelir Diane (sugerem um casamento e, no momento seguinte, ela beija outra mulher) ou parte de um jogo de tortura psicológica que talvez já levasse a cabo no decorrer da relação, e do qual a primeira cena, no estúdio, poderia fazer parte. Tanto Diane como Camilla surgem com personalidades radicalmente diferentes de Betty e Rita, algo muito bem vincado pelo bom trabalho das actrizes, em particular de Naomi Watts.

Ainda no flashback, vemos Diane receber uma chamada para sair para a festa na casa de Adam Kesher (não me parece que ele tenha outro nome no mundo real). O telefone, o candeeiro vermelho e os cigarros apagados no cinzeiro, são idênticos aos que vemos durante o sonho, no final dos telefonemas em cadeia a informar que “a rapariga” continua desaparecida, indicando a responsabilidade de Diane no destino da desaparecida (Camilla, morta no mundo real, Rita, sobrevivente na fantasia) (fig. 15).

No final da viagem na limusina, Diane mostra-se surpreendida com o local da paragem (“What are you doing? We don't stop here.”), de modo paralelo ao início do sonho, com Camilla: o local do acidente é o mesmo local onde Diane é forçada a aceitar a definitiva rejeição.

Durante o jantar, Diane conta a sua história, com diversos elementos que são o oposto do que vimos na fantasia, nomeadamente a sua posição em relação a Camilla/Rita. A tia morreu, terá trabalhado na indústria, mas não foi famosa ao ponto do seu nome ser reconhecido e deixou-lhe algum dinheiro. A carreira de Diane não tem corrido bem, desde que foi preterida por Camilla, no casting para o filme onde se conheceram: «The Silvia North Story». Na fantasia, Adam Kesher surge na posição do realizador desse filme (que foi outro, como tomamos conhecimento pelo indivíduo à direita de Diane) e Camilla é-lhe imposta pela máfia, apesar de tudo sugerir que o talento de Betty a levaria a ficar com o papel de protagonista. Desde então, o seu trabalho como actriz deve-se sobretudo à influência de Camilla. Perante isto, Coco dá-lhe umas palmadinhas na mão (“coitadinha...”) (fig. 16) Esta cena é paralela ao momento em «Lost Highway» em que Renée dá umas palmadas nas costas de Fred, depois de um acto sexual mal sucedido (um “ah, deixa lá isso”); o efeito devastador no amor-próprio das personagens principais é similar em ambos os filmes e essencial para entendermos as suas motivações.

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Fig. 19 e 20 - Diane no Winkies.
Abandonada e humilhada, Diane contrata um assassino no Café Winkie's, onde vê o homem que se aterroriza com algo que poderá estar nas traseiras do estabelecimento (e que conta o seu sonho, dentro do sonho de Diane). A empregada chama-se Betty; no sonho chamava-se Diane (fig. 19 e 20). Na mesa está o livro com números de telefone, para o qual Diane criou uma atribulada história na sua fantasia (com a morte de três pessoas e um aspirador). Diane mostra a pasta com dinheiro (que aparece com a “Rita” amnésica) e o assassino apresenta a chave azul (fig. 5) que será entregue como confirmação da execução do serviço. Este ri-se perante a pergunta de Diane sobre o que abre a chave, mas, tendo sido retirada do seu chaveiro, poderá concluir-se que já não tem utilidade e que a sua importância no "mundo real" é nula: não passa de um sinal.

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Fig. 21 e 22 - Fim do flashback. A chave azul regressa; o cinzeiro não está em cima da mesa.


os flashbacks terminam (fig. 21)

O flashback acaba com Diane, sentada no sofá, a olhar para a chave azul em cima da mesa, onde já não se encontra o cinzeiro em forma de piano (fig. 21 e 22). Ela está vestida com o roupão branco, sendo assim claro que estamos de volta ao presente.

Em termos puramente simbólicos, a chave, representação da consumação da morte de Camilla, abre a jaula dos demónios que arrastam Diane para o suicídio. No sonho é a porta para a realidade. Aqui, para a morte. Depois de revisitar os acontecimentos recentes, Diane fixa esse símbolo da (também sua) morte. Surgem então os dois velhotes – aqui como uma alucinação, à beira da loucura – que perseguem Diane. Ouvimos novamente batidas na porta, que poderão marcar o regresso dos detectives e a consciência de Diane de que o cerco se aperta à sua volta. Ela é perseguida, foge para o quarto, tira uma arma da mesa de cabeceira, aponta a arma à boca e dispara.

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Fig. 23 - A caixa azul na gaveta?
No interior da gaveta parece estar um objecto semelhante à caixa azul do sonho (fig. 23), que poderá ser uma caixa de jóias da própria Diane (sem relação com a chave do assassino). Estando próxima da cama, faz sentido que a caixa azul seja integrada no sonho, no seu final, apressado pelo bater insistente na porta (a visita de Betty e Diane, no sonho, corresponderá a uma visita dos detectives). Talvez fosse interessante conseguir descortinar os outros objectos presentes na gaveta. Algumas drogas, provavelmente. Ou talvez a caixa fosse usada para guardar comprimidos. Acabando estes, ou o seu efeito, Diane é forçada a regressar a uns momentos de realidade.

Assim se pode concluir que o presente narrativo em «Mulholland Dr.» se reduz a duas cenas: quando Diane acorda e quando Diane morre. O “silencio” final assinala a necessidade de enfrentar o mundo real e a responsabilidade pelos actos cometidos. Recorde-se que no Club Silencio descobrimos que tudo é uma gravação, nada é real. “Silencio” é uma espécie de pressão no botão de “stop”. Da fantasia e da vida de Diane.

1/05/02


No DVD, em substituição da lista de acesso a capítulos, David Lynch apresenta “10 Pistas para “Abrir” Este Triller”:

1 Tome particular atenção ao início do filme: pelo menos duas pistas são reveladas antes dos créditos.
2 Tome nota dos momentos em que surge a lâmpada vermelha.
3 Consegue ouvir o título do filme para o qual Adam Kesher está a fazer audições de actrizes? É mencionado de novo?
4 Um acidente é um acontecimento terrível... Repare no local do acidente.
5 Quem dá a chave e porquê?
6 Repare no roupão, no cinzeiro, na caneca de café.
7 O que se sente, o que se entende e se descortina no club Silencio?
8 Foi apenas o talento que ajudou Camilla?
9 Tome atenção aos acontecimentos em redor do homem por detrás do Winkie's.
10 Onde está a tia Ruth?

Leia também o comentário ao filme

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