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Relatório Minoritário/Minority Report
Realizado por Steven Spielberg
EUA, 2002 Cor – 145 min. Anamórfico.

Com: [editado da ficha técnica, segmentada por cenários] Tom Cruise, Max Von Sydow, Steve Harris, Collin Farrell, […] Samantha Morton, Daniel London, […] Lois Smith, […] Kathryn Morris, […] Peter Stormare, […] Mike Binder

Washington D.C., 2054. Há seis anos que se encontra em funcionamento o departamento policial de Pré-Crime, que recorre a três indivíduos com poderes psíquicos que, ligados a um sistema informático, conseguem prever com exactidão a ocorrência de homicídios. Tal leva a uma virtual erradicação destes crimes em Washington e há planos para ampliar o programa para todos os Estados Unidos. John Anderton (Cruise), o chefe do departamento, dedica-se de corpo e alma ao projecto, no qual acredita piamente, depois de uma tragédia que levou à desintegração da sua família. Danny Witwer (Farrell) é um agente do FBI determinado a encontrar falhas no sistema, antes do mesmo passar a ter âmbito nacional. Certo dia, Anderton vê-se forçado a pôr em causa o sistema em que depositou a sua fé e a fugir para conseguir provar ser inocente de um crime que ainda não cometeu.

Depois de «A.I.» (2001), Stephen Spielberg filma uma nova história de ficção científica, desta feita menos metafísica e mais virada para o entretenimento, apesar de almejar revestir-se de alguma seriedade, procurando tecer comentários ético-sociais, quando à temática em redor da qual este thriller se desenvolve. «Relatório Minoritário» faz também parte de uma categoria relativamente popular de filmes de duas ou três horas baseados em contos de Phillip K. Dick e, tal como exemplos anteriores, como ou «Blade Runner» (1982) «Total Recall» (1990), tudo indica que estamos novamente perante uma adaptação conceptual, que pega numa premissa e extrapola-a numa longa metragem, com muito pouco a ver com o material original, para além dos conceitos básicos e de algumas personagens.

«Relatório Minoritário» é (ainda) um thriller que pega no inesgotável tópico do inocente injustamente acusado de um crime que não cometeu, com a subtileza de que, neste caso, não foi outra pessoa que o cometeu. O crime, simplesmente, ainda não aconteceu, e os suspeitos são presos e sumariamente condenados com base numa presunção de culpa inelidível (os “direitos” são reforçados pela intervenção de um colectivos de juízes que funcionam como testemunhas, bem como o colectivo de Precogs, que confirmam, com as suas visões comuns, que o crime será perpetrado se o agente não for detido.

Spielberg trabalha com um argumento – Scott Frank e Jon Cohen – pormenorizado até certo ponto, escudando-se de entrar em questões éticas que poderiam consubstanciar um filme bem mais interessante, mesmo sem descuidar a componente de acção e de entretenimento. Não assistimos a grandes discussões sobre a autoridade que o estado têm para condenar alguém por um homicídio que não foi cometido; poderia ser punida a intenção ou a tentativa, mas o guião, atabalhoadamente, opta pela condenação pelo homicídio que iria, indubitavelmente, ser cometido. Como condenar alguém pelo que não fez? Não fez sentido nos dias de hoje, nem a ficção de «Minority Report» quer perder tempo a convencer-nos da razão e da lógica subjacentes a tal condenação: não há dano social que a justifique, nem há vítima (de crime consumado). Poderia existir alguma exposição que justificasse ou, pelo menos, ilustrasse as razões ético-sociais para condenar alguém por um mero processo de intenções, sem que daí se produzisse um resultado. Apesar das duas horas e 25 minutos de filme, não houve tempo para tal exposição ou discussão ética.

Outras questões éticas que poderiam ter sido desenvolvidas prendem-se com a situação dos Precogs, destituídos de direitos humanos e literalmente transformados em componentes informáticos. Os cidadãos parecem ser enganados quanto às suas verdadeiras condições de vida e não é Anderton, que até parece ser um indivíduo com algum sentido de justiça – com poucas falhas, descontando o facto de ser um bocadito viciado em drogas –, nem qualquer grupo de cidadãos ou ONG que se interessam pelo tratamento dado aqueles três seres humanos.

O funcionamento do sistema e o modo como os Precogs são usados não pode deixar de levantar algumas questões, no campo da pura lógica. Desde logo, se sugere que não existem senão aqueles três em todos os EUA, parecendo que a sua génese se deveu a um acidente, a um efeito secundário de um tratamento com outros fins. Faria sentido ver os interessados na manutenção e difusão nacional do sistema a tentarem “fabricar” (ou, quem sabe, clonar) outros Precogs, mas nem sequer ouvimos qualquer referência a tais procedimentos, sendo sempre implícito que só há três e sempre haverão somente aqueles três. Ora, em 2054, seria pelo menos de pressupor que se conseguiriam reproduzir as condições que potenciariam a criação de novos “Precognitivos”. Poder-se-ia alegar que um filme não pode referir todos os pormenores, não havendo razão para excluir que tal pudesse realmente estar a decorrer, mas a verdade é que o argumento do filme (e um facto muito importante na trama e respectivo clímax) presume sempre que o Pre-crime assenta exclusivamente naqueles três indivíduos, com a especial importância de Agatha (Morton). Assim, podemos perguntar como é que se pensaria ampliar o sistema. Existirá algum botão de sintonia, que se gira e os psíquicos passarão a captar intenções criminosas noutras cidades? E como conseguirão ter capacidade para abranger todos os EUA? Ou iria funcionar de modo itinerante? “Esta semana, em Nova Iorque”? (Levaria a períodos de abstenção criminal rotativos). E quanto à percepção do mundo real por parte dos Precogs? Sabemos que eles passam todo ou a maior parte do tempo a ter visões de crimes, e que estão constantemente isolados e drogados na sua câmara. Poderiam ainda assim vir a ter uma vida normal? Comunicariam normalmente com os outros...?

Raros são os filmes que se apresentam como narrativamente estanques, sem fugas, e há casos em que conseguimos apreciar um filme de acção, de horror, thriller, etc., pelo mero prazer de o ver (há sempre quem não consiga). Mas esses filmes de “acção pura”, ou “puros” de qualquer outro género, funcionam porque se mantém simples, isto é, não se recheiam de pormenores e pistas que depois ficam a flutuar no ar ou padecem de lógica. Tal acaba por se reconduzir à pretensão do filme ou dos cineastas. Esta síndrome pode ser ilustrada por um filme como «Missão Impossível», de DePalma e pela sua ultra-segura câmara hermética, sensível ao calor e à humidade, mas sem circuito vídeo interno. Também aqui, se elaboram detalhes do funcionamento de algumas coisas, mas depois, quando é conveniente, prosseguir uma cadeia de acontecimentos lógica, os argumentistas olham para o ar e assobiam. Aqui se enquadra a impossibilidade de alguém fugir da justiça por ser identificado por onde quer que andasse, mas, por contraste, ninguém se lembrar de rever o seu livre acesso a vários edifícios. Isto é um contra-senso, já que o mesmo mecanismo, criado para gerar uma peripécia “emocionante” no argumento, é depois levianamente ignorado para facilitar o avanço da acção.

[O leitor que ainda não viu filme não deve continuar a ler o texto a partir do próximo parágrafo.]

Há outra simplificação ou talvez mais uma omissão ou “buraco” narrativo, que se reconduz à capacidade de focagem dos agentes psíquicos em crimes de homicídio. A razão pela qual eles não prevêem senão crimes de homicídio é explicada por uma única frase, em jeito de citação poético-científica, mas parece-me que isto é incoerente com o momento posterior em que vemos que Agatha afinal consegue prever tudo e mais alguma coisa, em relação às pessoas que passam por ela ou ao que vai acontecer de imediato, não parecendo, deste modo, haver alguma justificação para que os seus serviços não fossem usados para prever outros tipos criminais. Tratou-se de outra cena “emocionante”, só porque tal fazia falta naquele momento, sem grandes preocupações com a lógica.

Sendo certo que a “captação” das intenções criminosas não é uma questão fulcral, já que tudo se reduzia à previsão dos próprios acontecimentos futuros e a lógica, ou falta dela, prende-se apenas com a aceitação por parte do espectador, dos mais elaborados cenários de futuros alternativos – pescadinha de rabo na boca: Anderton mataria Crow porque julgaria que este matou o filho, mas só o faria por ver a previsão do crime, que o levava a procurar Crow para saber porque é que o quereria matar, logo os Precogs prevêem algo que tem origem na sua própria previsão – novamente a lógica interna do filme atrapalha-se e estatela-se no chão, por não conseguir explicar como é que se obtém a hora exacta do crime (fácil: porque uma contagem decrescente é emocionante), mas não se consegue ver bem os rostos de alguns criminosos. E porque é que o “eco” que apresentava uma segunda previsão do mesmo crime não apresentava logo a cara do criminoso, que, afinal, acaba por ser recuperada para – mais um momento emocionante – a festa na sua casa, perante a nata da sociedade?

Spielberg esforça-se por introduzir alguns ingredientes que tornem o filme menos “bem comportado” e um pouco mais negro, viscoso e sujo, como toda a sequência com Peter Stormare e a sua assistente, mas a personagem do cirurgião e o seu encontro prévio com Cruise, acaba por existir para mais alguns momentos de duvidoso valor humorístico (onde se incluem também as consequências de uma perseguição anterior). Anderton, note-se, tinha conhecimentos no mundo criminoso para resolver o seu problema (precisou de uma sugestão da Dra. Hineman), mas, estranhamente, não se lembrava que o cirurgião que conhecia tinha por ele sido detido anteriormente, arriscando-se assim a sérias represálias. Também parece ser um esquecimento do texto (ou algo que ficou para as cenas apagadas do DVD), a inexistência de uma referência posterior ao estado da visão do polícia, depois da inspecção pelas aranhas.

Quando há necessidade de puxar pela emotividade, Spielberg não consegue construir quadros convincentes – é mais eficiente com a frieza e crueza das cenas de guerra de «Saving Private Ryan» (1998) ou as violências do IIIº Reich em «Schindler's List» (1993) – e aqui não estamos perante nenhuma excepção. Fiquei na dúvida se a simulação de Agatha do presente e futuro do filho desaparecido, Sean, se tratava de um suposto “momento emocional” ou de uma vingança cruel da sua parte contra o seu raptor. O final, delicodoce e muito pobre, parece levar-se a sério, não faltando a mãozinha de Anderton, a afagar a barriga da mulher grávida, que irá pôr no mundo o substituto pelo filho desaparecido. O destino final dos Precogs é estranho: Anderton convence-nos que o melhor para eles é ficarem fechados numa quinta, numa ilha longe de tudo e todos, a ler livros e a plantar batatas. Isto devido “às suas capacidades” ou algo assim, ficando por se explicar como é que tal ostracismo é positivo e como seria substancialmente diferente da prisão forçada, ao serviço da comunidade, dentro dos tanques. A sua condição de videntes não sugeria, por si só, que se tratassem de indivíduos com capacidades intelectuais tão grandes que justificassem que o seu paraíso seria o isolamento da sociedade, num ambiente rodeado de literatura. Precisavam simplesmente de estar longe de tudo para não serem assombrados pela captação continuada de crimes? Talvez o argumentista devesse referi-lo na narração final. Por outro lado, se há drogas que os mantinham permanentemente a sonhar, também há drogas que os impediriam de sonhar se fosse esse o seu desejo.

Se há algo que melhor pode ilustrar o pior da artificialidade do cinema de Spielberg, e o modo como a imagem e os conceitos de “cinema de emoções” condicionam a lógica e minam o que poderia ser um bom argumento, é o plano que culmina com a morte do vilão. Não há muitos exemplos no cinema de suicídios com tiros na barriga ou sequer no peito, sendo a opção predilecta do suicida que recorre a uma arma de fogo encostá-la à cabeça, enfiar o cano dentro da boca, debaixo do queixo, etc. Mas Spielberg, levado pela necessidade de mais um momento de suspense e de emoção, força Lamar Burgess (von Sydow) a alvejar-se abaixo do peito. A razão é meramente cinematográfica e quase podemos imaginar o pensamento de Burgess: “deixa-me lá meter o revólver cá mais para baixo, porque a câmara está a enquadrar-nos do peito para cima”.

Sobram alguns momentos divertidos de acção e de techno-triller ligeiro – apesar de não se poder esperar grande impacto de cenas com um actor a saltar de bloco digital em bloco digital –, que funcionariam melhor se a duração do filme não fosse tão excessiva.

**
classificações


UCI El Corte Inglés 9: projecção com focagem baseada na legendagem e não na imagem do filme e com consequente perda de definição, agravada por uma grande proximidade de um grande ecrã, que também permite melhor apreciar todo o grão do “glorioso” processo Super35. Som não muito dinâmico, abafado, apresentando algumas “explosões” de som para os surrounds em 3 ou 4 ocasiões (não relacionadas passagens de bobine). Questões inesperadas numa sala nova e bem equipada. O som terá sido Dolby apesar da sala estar equipada com DTS, o sistema de eleição de Spielberg.

Publicado on-line em 28/10/02.