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Año Mariano/Ano Mariano
Realizado por Fernando Guillén Cuervo e Karra Elejalde
Espanha, 2000 Cor – 117 min. Anamórfico.

Com: Karra Elejalde, Fernando Guillén Cuervo, Manuel Manquiña, Gloria Muñoz, Silvia Bel, Fernando Guillén, Juan Viadas, Pepín Tre, Karlos Arguiñano.

Algures no interior sul da Península Ibérica, 1999. Mariano (Elejalde), é um pequeno distribuidor de aperitivos, aparentemente movido a álcool. Um dia, completamente ébrio, ao volante do seu automóvel, tem um acidente e vai parar a um campo de cultivo de haxixe prestes a ser incinerado pelas forças da autoridade. Devido a uma série de coincidências, Mariano irá ser considerado um novo profeta, com contactos privilegiados com a Virgem Maria, sendo seguido por um grupo de fiéis que vai crescendo dia após dia, tal como os resultados comerciais do culto. António Torres AKA Tony Towers (Guillén Cuervo), um ladrãozeco-artista tornado proprietário das terras onde o “milagre” se deu, torna-se o seu agente.

«Ano Mariano» assinala a estreia na realização de Karra Elejalde, actor de renome no seu país natal, um crédito dividido com Fernando Guillén Cuervo, com o qual também co-assina o argumento. A dupla co-escreveu igualmente «Airbag» (1997), uma das obras cinematográficas comercialmente mais bem sucedidas em Espanha, em colaboração com o realizador Juanma Bajo Ulloa. Presume-se que terão querido replicar o sucesso dessa obra menor do autor do magnífico «La Madre Muerta» (1993), onde Elejalde encarnou um emblemático psicopata.

Quem tem algum conhecimento de comédias mal comportadas espanholas – para lá de Almodóvar, que ficou com o único título de Artista Kitsch Hispânico que estava disponível, assim dificultando as possibilidades de aceitação de outros cineastas, fora de Espanha – terá uma ideia do que o pode esperar, mesmo antes de ler a segunda metade deste parágrafo. «Ano Mariano» é uma paródia religiosa sem grandes pretensões sérias de crítica social, com momentos divertidos, aqui e ali, podendo proporcionar uma sessão nocturna bem passada, a uma audiência que já esteja, digamos, muito bem disposta e sem capacidade para conduzir um automóvel (ou que já se esteja a rir muito antes do início da sessão).

Aqueles de entre o público católico (culto religioso com alguma penetração na Península Ibérica) que considerem que não se deve “brincar com coisas sérias”, melhor farão em seleccionar outro programa (e, já agora, mantenham-se afastados de qualquer comédia brejeira de produção espanhola). «Ano Mariano» fundamenta milagres em alucinações motivadas por consumo de álcool e drogas e apresenta os seguidores do “culto Mariano” como uma espécie de “agarrados” (por muito que me esforce não consigo entender esta metáfora, mas vou continuar a tentar), não à fé, mas a alguns dos seus produtos de consumo, que tornam o organismo dependente e com vontade de voltar à procura de mais. Um sentido mais visceral (e prático) de “fiel”. Por outro lado, Mariano têm visões com Maria (Bel), na pele de uma mulher de carne e osso, a qual deseja em substância, apesar de ter dificuldades em vê-la na sua forma terrena. Tecnicamente, no léxico católico romano, tratar-se-á de “blasfémia”, mas estas polémicas andam um bocado fora de moda e como não se trata de uma grande produção, com possibilidades de atingir o grande público, não será possível obter publicidade extra por essa via.

Sendo divertido, o filme da dupla Guillén Cuervo-Elejalde, é facilmente esquecido meia hora depois do final da sessão. O humor tem alguns momentos inspirados, mas, de um modo geral, tem muitas limitações. Narrativamente também há umas arestas por limar. Deixam-se em aberto cenários que parecem ter sido introduzidos sem grande convicção. A componente “reality show” religioso nunca descola verdadeiramente, o “gag” da dislexia é circunstancial e os “maus” da fita, apesar de serem decalcados de lugares comuns (o industrial que quer os terrenos, o sobrinho da guarda civil) parecem querer levar-se demasiado a sério (e acabam por não ter grande importância). Melhor se teria feito removendo essas pontas soltas e deixando o filme com uns modestos 90 minutos.

Mesmo com os todos os seus defeitos, teria sido mais interessante vermos estrear o referido «Airbag» – nem que fosse só para ver Maria de Medeiros a levitar –, um dos títulos inéditos de Alex de la Iglésia (de quem, ainda assim, pudemos ver por cá «O Dia da Besta», de 1995, e «Perdita Durango», de 1997), como «Muertos de Risa» (1999), ou «La Comunidad» (2000), ou os mais escabrosos «Torrente» (1997 e 2001), de Santiago Segura. Felizmente o cinema espanhol parece ter já algumas estreias regulares entre nós – ainda que, tendencialmente, apenas títulos mais “artísticos –, para lá dos obrigatórios Almodóvar, pelo que é sempre de esperar mais e melhor. Não sendo um grande filme – longe disso – dizer que «Ano Mariano» é o pior filme do ano é de um terrível pessimismo e de uma grande falta de esperança pelo que ainda nos espera.

Esta obra encontra lugar no nosso circuito “comercial” graças à exploração do cinema São Jorge pela Câmara Municipal de Lisboa. É pena que o novo proprietário das salas tenha optado por manter a “tradição” dos intervalos que interrompem o filme num momento não previsto pelos cineastas, quebrando o seu ritmo, para que alguma das 10 pessoas da sala vá beber um cafézinho a um dos bares remodelados. A projecção e o som estão aceitáveis (Sala 2), apesar desta última componente parecer desequilibrada, com som muito alto a querer sair apenas das colunas do ecrã e com infrequente utilização dos surrounds, mesmo em cenas mais movimentadas.

Uma nota para a tradução: é ridículo que se censurem palavrões em castelhano sobretudo quando têm uma sonoridade similar aos equivalentes portugueses, como é o caso de “joder” e “tomar por el culo” que passam às variantes costumeiras de “lixar”(!) É estranho e chega a ser embaraçoso. O mesmo se pode dizer do paternalismo de quem tem uma total inabilidade para lidar com o calão – com a cultura popular, enfim, com o que dá o colorido aos diálogos – ao traduzir “6 de Janeiro” por “Dia de Reis”, explicando uma piada e antecipando a sua punch line. Só isto é suficiente para que se continue a recomendar a quem não queira pagar salários a censores, que não compre estas edições em VHS/DVD nacional.

**1/2
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Publicado on-line em 20/01/02.