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O Insaciável/Ravenous
Realizado por Antonia bird
EUA/Reino Unido, 1999 Cor - 101 min. Anamórfico

Com: Guy Pearce, Robert Carlyle, Jeremy Davies, Jeffrey Jones, John Spencer, Stephen Spinella, Neal McDonough, Sheila Tousey, Bill Brochtrup, Joseph Running Fox, David Arquette

EUA, 1847. O recém promovido Capitão John Boyd (Pearce) é enviado para o Fort Spencer, um posto edificado num local remoto no meio da Sierra Nevada, a vários dias de viagem do mais próximo marco civilizacional. O Forte está reduzido ao número de efectivos mínimo para a sua gestão: o Coronel Hart (Jones), o Major Knox (Spinella), médico improvisado e alcoólico, os soldados Toffler (Davis), uma espécie de capelão, Reich (McDonough), o duro de serviço, e Cleaves (Arquette), sempre feliz, sobre influência de produtos naturais alucinógenos. Completam o grupo dois índios, os irmãos George (Running Fox) e Martha (Tousey).

Numa noite, chega ao local um homem desesperado (Carlyle), que diz chamar-se Colqhoun e conta a história de uma viagem que terminou mal, quando os pioneiros, perdidos numa tempestade interminável, foram forçados a recorrer ao canibalismo. O guia, um militar de nome Ives, teria tomado o gosto da carne humana e começado a matar os sobreviventes um a um. Hart ordena que se parta em busca da caverna onde se poderá encontrar Ives e, possivelmente, um outro sobrevivente. George relata o mito indígena que estabelece que o homem que comer carne humana absorve o espírito e a força vital da sua vítima, normalmente um inimigo.

«Ravenous» fez-nos pensar, quase de imediato, em dois outros filmes. O primeiro é «The 13th Warrior», de John McTiernan, apenas pela grande coincidência que é estrearem, na mesma semana, dois filmes que integram o canibalismo na premissa, e onde um realizador foi afastado (no caso do presente, praticamente no início da rodagem). O outro é a comédia ultra-low-budget «Alferd Packer: The Musical» (1993) (posteriormente conhecido como «Cannibal: The Musical»). Aqui as semelhanças são mais efectivas. Temos também uma história relatada por um sobrevivente, com contornos, digamos, a requer mais explicações, um guia muito mau, um grupo de pessoas perdidas nas montanhas e forçadas a recorrer ao canibalismo e até a próxima caracterização física de um dos personagens, pelo que seria muito natural que o visionamento do filme de Trey Parker - mais tarde mundialmente famoso, excluindo Portugal, por ser o co-criador, com Matt Stone da série animada "South Park" - pudesse pelo menos ter influenciado a rodagem do segmento inicial, senão mesmo a escrita do guião. (Supõe-se que não esteve na sua base a mesma história real, pois, se assim fosse, os produtores não perderiam a oportunidade de introduzir a frase obrigatória.)

O espectador com alguma voracidade por cinema de horror tem aqui uma boa oportunidade de tirar a barriga da miséria. «Ravenous» não é um filme dirigido a um público adolescente, preparado para passar uns "momentos divertidos"; leva-se a sério, apesar de não rejeitar algum humor (mais ligeiro do que subtil), nem se deixa entrar - e como seria fácil - no modo piloto automático de um mau "slasher", com um psicopata a matar "shreddy" atrás de "shreddy" até ao confronto final.

O canibalismo é muito sugestivamente apresentado como uma religião milagrosa, em que os fiéis são curados de todos os males, sem precisar de dar o dízimo como contrapartida. No entanto, a comparação directa, apresentado num diálogo, não nos remete para uma qualquer seita obscura, mas para o Cristianismo, onde a troco de contrapartidas de bem-estar algo semelhantes (mas proteladas para o outro mundo) os fiéis praticam rituais que incluem canibalizar o corpo de Jesus todos os domingos. Aqui, claro, o ritual é meramente simbólico, mas para as coisas funcionarem neste mundo, aparentemente e de acordo com a filosofia do filme, a ingestão tem de ser real.

Antonia Bird dirige o filme, com a sensibilidade reforçada de uma vegetariana - depois do despedimento do realizador original, Milcho Manchevski, a pedido de Robert Carlyle, com o quem trabalha pela quarta vez -, misturando os ingredientes nas proporções correctas, pelo menos até dois terços de filme. O final não satisfaz plenamente na construção de um clímax que seja "emocionante" e ao mesmo tempo coerente com a sobriedade do tratamento do tema. Mesmo beneficiando de uma banda sonora eficaz de Michael Nyman e Damon Albarn, podia-se ter ido mais longe na criação de uma atmosfera de genuíno terror, que envolvesse o espectador.

O sangue escorre com alguma abundância, mas o filme não é tão violento quanto possa sugerir o tema "canibalismo" com uma classificação M/18 agrafada. Um limite etário exagerado, tendo em conta que o espectador médio de 16 anos provavelmente aborrecer-se-á com a falta de graçolas que facilitem mascar pipocas, ou com a localização no Oeste selvagem, mas com poucos tiros disparados, e até com o facto dos personagens serem adultos e não liceais cábulas, fumadores de haxixe, com carros velozes e com uma atitude despreocupada em relação à vida.

***1/2
classificações

Publicado on-line em 25/8/99.