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Betty/Nurse Betty
Realizado por Neil LaBute EUA, 1999 Cor – 110 min. Anamórfico. Com: Morgan Freeman, Renée Zellweger, Chris Rock, Greg Kinnear, Aaron Eckhart, Tia Texada, Crispin Glover, Pruitt Taylor Vince, Allison Janney, Kathleen Wilhoite
Fair Oaks, no estado americano do Kansas. Betty Sizemore (Zellweger) é uma empregada de bar casada com Del (Eckhart), proprietário de um stand automóvel. Uma vida monótona, presa a um homem que a despreza, que mantém relações com outras mulheres e tenta negociar em drogas nos tempos livres, contribui para que se embrenhe demasiado no mundo de sonho da telenovela “Uma Razão para Amar”, e que suspire pelo personagem do médico David Ravell, interpretado na vida real (do filme) por George McCord (Kinnear).
Um choque vai fazer Betty entrar numa espécie de transe, que a convence que a história da novela é a mais pura das realidades e que ela não é senão a ex-noiva do “Dr. Ravell”. Decide, assim, abandonar o marido e tentar recuperar a paixão perdida. Dois assassinos contratados, Charlie (Freeman) e Wesley (Rock), partem em sua perseguição, a caminho de Los Angeles, convencidos de que ela transporta droga roubada aos seus empregadores.
Neil LaBute alcançou notoriedade através da realização de duas obras independentes, «Your Friends and Neighbors» e «In the Company of Men», rotuladas por muitos como misóginas e excessivas (ou talvez apenas excessivamente misóginas?) O registo de «Nurse Betty», por comparação, trouxe-lhe acusações de amolecimento, de um lado, bem como, por outro lado, comentários de que teria removido “a sua pele de réptil”, abraçando um leque de emoções mais vasto, citando Peter Matthews, na revista britânica Sight and Sound (9/00).
«Nurse Betty» mistura uma série de géneros e referências cinematográficas. Pode remeter-nos para a «Rosa Púrpura do Cairo», de Woody Allen, ou para uma série de filmes modernos com gangsters carismáticos, populares depois do sucesso de um par de filmes assinados por Quentin Tarantino, o próprio um especialista em remisturar e reutilizar referências de grande diversidade. Não sendo tão crítico e acutilante como obras recentes como «Happiness» de Todd Solodz, ou «American Beauty», de Sam Mendes, partilha com estes uma certa tendência para colocar o espectador (ou alguns espectadores) em situações de indecisão sobre o que é humor e o que é drama. Eis uma comédia que não faz questão de se comportar como tal. No meio de risinhos involuntários, LaBute não se coíbe de apresentar uma cena sangrenta brutal, que, decididamente, não é suposto ter piada alguma. Esta característica pode contribuir para que nos alheemos das relações e situações mais sérias, mas a artificialidade ou o desprendimento daqui resultantes são coerentes com o cenário da futilidade e da aparência das “soap operas” que inundam o espectro televisivo.
Talvez fosse fácil para LaBute, que aqui trabalha pela primeira vez com um argumento que não é seu, apresentar os bastidores das novelas de Hollywood de um modo venenoso e mordaz, mas nenhuma espécie de juízo é feita expressamente, mostrando-se apenas os excertos e a reacção dos telespectadores. As pessoas do “meio” são caracterizadas, de um modo geral, como quem apenas quer fazer o seu trabalho. A produtora do programa é competente e inteligente, escapando ao cliché da personagem fria e manipuladora, que apenas pensa nas audiências. Ou, por outro prisma, apesar de pensar nas audiências e de ser manipuladora, inspira-nos relativa simpatia.
O filme debruça-se também sobre as fantasias individuais e a capa das aparências. Betty passa a acreditar no mundo da novela e o criminoso Charlie projecta nela uma imagem totalmente diferente da realidade, apesar de aqui se registar uma oposição substancial: Betty é o que aparenta ser e Charlie vê nela o que não é, enquanto o Dr. Ravell, personagem de ficção, é real aos olhos de Betty. Ela confunde a ficção com a realidade enquanto ele ficciona uma realidade. As personagens têm em comum, como o segmento final desenvolve, a exclusividade do modo como vêm o objecto das suas fantasias.
[A viagem à “terra da fantasia” é ilustrada pela referência explícita a “Dorothy”, d' «O Feiticeiro de Oz», que também vivia no Kansas. O tradutor português recusou-se a escrever no ecrã a frase onde o nome se incluía, talvez por tal lhe passar ao lado ou por considerar que o público nunca perceberia o que aquilo queria dizer. Isto é coerente com outros momentos omissos, sem contar com a gravíssima censura a todos os “palavrões”, sem excepção (há um imaginativo e envergonhado uso do termo “camandro”, talvez porque o desgraçado do tradutor estivesse farto do “lixar” para aqui e para ali). Em Portugal, metem-se bolinhas vermelhas em filmes que passam na TV às 3 da manhã, mas ninguém estranha que, no pico das audiências, à hora de jantar, se mostrem pirilaus ou sexo ao vivo. Entretanto, tem de se censurar linguagem “moralmente imprópria”, por razões desconhecidas.]
Apesar de conter alguns momentos que não fariam grande falta, e cuja remoção melhoraria o fluir da história, apressando a acção, «Nurse Betty» consegue convencer. Um momento que ilustra como o texto e as interpretações são adequados é o “reencontro” entre Betty e o Dr. Ravell, que poderia ficar-se por um mero momento embaraçoso, mas que se revela um delicioso jogo de confusões, onde os actores – representantes da falsidade e do elogio da aparência – se deixam convencer pela “novela” de Betty.
Zellweger, recentemente galardoada com um Golden Globe, na categoria de melhor actriz de comédia, carrega boa parte do filme sozinha, apesar de creditada depois do nome, comercialmente mais forte, de Morgan Freeman. Este, sem grandes surpresas, é relativamente competente. Rock, contorna o typecasting do negro engraçadinho e histérico, apresentando-se, para muitos, como pouco convincente no seu papel de gangster nervoso, resmungão e revoltado com tudo e todos. No entanto, a atitude de Wesley, em particular os constantes confrontos com Charlie, ganham nova luz perante componentes telenovelescos do desenlace.
Publicado on-line em 29/01/01.
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