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cartaz |
Donnie Darko
Realizado por Richard Kelly EUA, 2001 Cor – 113 min. Anamórfico. Com: Jake Gyllenhaal, Jena Malone, Drew Barrymore, James Duval, Beth Grant, Maggie Gyllenhaal, Mary McDonnell, Holmes Osborne, Katharine Ross, Patrick Swayze
Donald 'Donnie' Darko (Gyllenhaal) é um adolescente que sofre de episódios de sonâmbulia e tem consultas regulares de psicanálise, devido ao que parecem ser problemas psicológicos graves. Estas perturbações incluem um “amigo imaginário”, o coelho gigante chamado Frank, que, certa noite, lhe diz para sair de casa e o informa que o mundo terminará dentro de 28 dias, seis horas, 42 minutos e 12 segundos, ou seja, na noite de Halloween, a 30 de Outubro de 1988. Donnie começa a tomar consciência de certas realidades metafísicas e a interessar-se por viagens no tempo, já que Frank afirma vir do futuro, ao mesmo tempo que demonstra dificuldade em comportar-se civilmente na escola ou em actividades sociais na pequena cidade de Middlesex. Frank, entretanto, convence Donnie a cometer actos censuráveis, sem que este perceba com que fundamento.
A componente de ficção científica de «Donnie Darko» é apresentada de um modo naturalista, sem nada que ver com os mecanismos de exposição do cinema-espectáculo, não invalidando que existam alguns efeitos digitais visuais e que os mesmos sejam relativamente satisfatórios e convincentes. O filme conta-se como um drama e como um thriller negro, alternativamente, e o espectador é sempre levado a questionar a validade dos dados “científicos”, que vão convencendo a personagem central de qual o caminho a seguir, uma vez que não é claro se o que estamos a ver e ou não o produto de uma mente desequilibrada.
Poderá haver quem assim o entenda, mas este não é um filme que esteja totalmente assente nos minutos finais, i.e., na “resolução” que vai encaixar os elementos expostos durante as duas horas de filme. Por um lado porque até lá temos uma série de situações familiares, no cenário da escola, a interacção entre os colegas, etc., produtos de um texto bem escrito e que reflectem personagens convincentes e bem desenvolvidas, incluindo a generalidade dos secundários, mesmo aqueles que se possam reduzir a clichés, como Kitty Farmer (Grant) e o seu guru, Jim Cunningham (Swayze). O final, não tem um mero efeito de “explicação”, não me parecendo que a “surpresa” (ou não) seja essencial para apreciar o filme na sua totalidade. Para lá de um ou outro momento de humor desnecessário (como a referência ao Bonanza) e da professora de inglês interpretada por Drew Barrymore que ocupa um pouco de tempo a mais de ecrã, a narrativa de «Donnie Darko» apresenta-se relativamente inatacável. A presença de Barrymore decorrerá do facto da actriz ser também produtora executiva, e ela constitui provavelmente a única razão para o filme ter obtido financiamento (talvez a sinopse de 25 linhas também estivesse muito bem escrita).
Kelly revela-se um bom director de actores e um realizador com visão, capaz de ser comedido nos efeitos e de captar e de dar relevo a pequenos momentos que em certo contexto poderiam ser insignificantes. É raro que uma primeira obra, para mais pegando em tal temática, revele a completa desnecessidade em impressionar, filmando um thriller negro de ficção científica como se de um drama se tratasse, dando importância central ao texto.
«Donnie Darko» surgiu nos EUA não muito depois de «Mulholland Dr.» (2001) e houve quem os comparasse pelo mero prisma do efeito de interpretação requerido depois de chegar ao final. Os dois filmes são muito diferentes, em termos substanciais, sendo a relação reduzido ao efeito de provocar discussões e de confrontar interpretações diferentes. Lynch não aprecia revelar demasiado, fornecendo algumas pistas ou aflorando algumas soluções quando questionado em entrevistas, mas Kelly, por outro lado, não se importa de fornecer uma interpretação autêntica, através de material não usado, do comentário áudio e de outros elementos presentes na edição em DVD, nomeadamente o livro de Roberta Sparrow, que acaba por parecer um esqueleto científico sobre o qual a narrativa se constrói, explicando ponto por ponto, personagem a personagem, a lógica que preside ao filme (quem inserir o nome da autora em qualquer motor de busca deve encontrar uma transcrição ou reprodução do livro).
[O próximo parágrafo não é aconselhável a quem não viu o filme e pode ser lido seleccionando-o com o rato.]
Ao lado do conceito de destino, ou do caminho que cada um de nós é levado a seguir, comandado por uma entidade abstracta, contra a qual nos podemos eventualmente rebelar, existem parábolas religiosas, com falsos profetas e mártires que se sacrificam em prol dos outros, algo reforçado pela referência à «Última Tentação de Cristo» (1988), de Scorsese (Kitty Farmer não conseguiu banir a sua exibição), a ser exibido numa sala de cinema numa improvável sessão dupla com «The Evil Dead» (1982), de Sam Raimi, um filme onde o elemento das viagens no tempo também está presente, apesar de ser secundário. Cunningham (as iniciais JC podem não ser coincidência) apela a uma moral social muito popular nos EUA, baseada em conceitos muito bem delimitados de certo e errado – também ilustrados pela dualidade “Medo”-“Amor – e sustida em programas de TV e vídeos, com depoimentos “reais” de “pessoas normais” que viram a luz, que funcionam como verdadeira lavagem cerebral, adequada para fazer um carneirinho dócil de qualquer cidadão (normalmente, sem excluir o direito de posse de armas, para prevenir contra as forças satânicas). Esta moral é ilustrada pela ignorância das causas dos males da sociedade, preferindo apontar o dedo a um filme ou um livro que os “inspirou” ou “provocou”, numa lógica de desresponsabilização do indivíduo pelos seus próprios actos ou da sua incapacidade para fazer juízos de moral num mundo onde não há só preto ou branco, certo ou errado. Donnie, neste contexto, assume o papel de um Messias, que se revolta contra estes falsos profetas e vê como único caminho a seguir o sacrifício pessoal, para assim poder salvar o mundo. Até há bem pouco tempo, «Donnie Darko» seria um tipo de filme de improvável estreia entre nós, quanto mais de ser exibido num multiplex, o que reflecte que a maior oferta de salas de cinema na capital não implica apenas mais salas para mostrarem os mesmos filmes, mas também que, felizmente, vai também aumentando o espaço para títulos mais alternativos. Há algo que, lamentavelmente, não parece mudar, que é a censura dos tradutores ou dos distribuidores, condenável não apenas pelo acto censor em si, mas também pelas consequências ao nível da perturbação da sessão de cinema, já que o público se ri com algo que não tem a ver com o filme e desata a cochichar (quando não são comentários bem altos), sempre que aparece mais uma daquelas traduções “tímidas”, como o muito vincado “fuuuuuuuck!” de Drew Barrymore “traduzido” por “porra!” (já em si uma palavra nada bonita; feio por feio, que se traduza correctamente). UCI El Corte Inglés 10. Relativamente bem focado, som OK. Publicado on-line em 28/10/02. |