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O Projecto Blair Witch/The Blair Witch Project
Realizado por Daniel Myrick e Eduardo Sanchez
EUA, 1999 Cor - 81 min.

Com: Heather Donahue, Michael Williams, Joshua Leonard, Bob Griffith, Jim King, Sandra Sanchez, Ed Swanson, Patricia Decou

"Em Outubro de 1994, três estudantes de cinema desapareceram na floresta próximo de Burkittsville, Maryland, enquanto rodavam um documentário. Um ano depois o material foi encontrado." Esta é a premissa e o texto no écran que abre «The Blair Witch Project». O documentário foca o mito de uma bruxa que aterrorizou a povoação de Blair (que viria a tornar-se Burkittsville). Tudo começou em 1785, quando algumas crianças acusaram Elly Kedward de as atrair para a sua casa e de aí lhes retirar sangue. A mulher, considerada uma bruxa, seria expulsa e dada como morta, mas um ano depois os acusadores e metade das crianças da povoação desapareceram. Uma série de acontecimentos inexplicáveis registam-se ao longo dos anos, até que, em 1994, Heather decide realizar o documentário sobre o mito. Seria só em 1997 que, depois de uma investigação inconclusiva sobre o destino dos três jovens, a mãe, Angie Donahue, decide ceder o material à Haxan Films…

«The Blair Witch Project» iniciou uma marcante carreira de sucesso no Festival de Cinema de Sundance. A campanha de marketting centrou-se em informação disponibilizada em páginas da Internet, onde se construiu todo um cenário sugerindo a realidade dos factos apresentados no filme. Outro elemento importante é "The Curse of the Blair Witch", o documentário falso sobre o documentário falso, exibido na televisão dias antes da estreia. É difícil não sentir alguma simpatia por um projecto independente, filmado em vídeo e com uma câmara de 16mm, pela módica quantia de 25 mil dólares, a fechar o ano nos 140 milhões. Já se sugeriu que um dos factores de atracção teria sido o conhecimento e apreciação que as audiências modernas têm pelos números e pelos mecanismos da indústria: "vamos ver aquele filme barato que está a fazer milhões!"

Muito se escreveu sobre o filme, exultando as suas qualidades, com o principal acento tónico na capacidade de exprimir terror mostrando pouco ou nada, "ao contrário da generalidade dos filmes do género". Mas, se há algo que «The Blair Witch Project» mostra é que um conceito não faz um bom filme. Existe aqui uma ideia, mas não há desenvolvimento satisfatório. Há histeria em vez de representação. O tom de realismo obtém-se através do improviso dos actores sobre linhas de evolução predeterminadas. Se os diálogos parecem reais é porque, de facto, não foram escritos. Há boas actuações? Tanto quanto se alguém filmasse os amigos em roda da mesa do café. Eles estão mesmo a beber café e a conversar! Que interessa ao espectador que se tenham colocado os actores em condições semelhantes às que vemos no filme? Se por detrás da câmara existissem roulottes e uma vasta equipe técnica, o resultado final seria diferente? Não parece. A verdade é que a apreciação do filme se tem centrado mais em tudo o que está em redor, tudo o que é secundário, do que sobre a obra em si. Cinema é sobretudo simulação, fingimento. O filme de Myrick e Sanchez é credível nos termos em parece realmente o resultado do trabalho de três jovens que fingem estar a produzir um documentário.

Nos dias que correm é difícil falar em originalidade. Há originalidade do tratamento, da estrutura, etc., mas uma premissa completamente original é difícil de rebuscar, depois de um século de cinema. Não é nada que exista aqui. Formalmente, existem imensas obras com câmara à mão, a simular o ponto de vista do personagem ou até a apresentar os acontecimentos em "tempo real", para maior efeito dramático. Quanto ao ponto de partida, o registo falseado de acontecimentos reais com final trágico, o par de filmes que primeiro nos vem à memória é constituído por - e, por esta altura, muito já se deve ter referido pelo menos o primeiro - «Holocausto Canibal» (1979), do italiano Ruggero Deodato e «C'Est Arrivez Près de Chez Vous» (1992), dos belgas Rémy Belvaux, André Bonzel e Benoît Poelvoorde, conhecido por cá pelo ridículo título «Manual de Instrucção para Crimes Banais». Tanto um como outro apresentam uma equipe documental a filmar a "realidade": no primeiro caso, uma tribo de canibais na Amazônia; no segundo, um assassino em série. O primeiro esforça-se por aparentar realidade tanto quanto possível, recorrendo a truques sempre que não há possibilidade técnica de representar o horror com a credibilidade requerida (película em mau estado, por exemplo - comparar com a imagem desfocada em «BWP», e o diálogo sobre metros vs. pés); o segundo é uma comédia negra e não tem tal intuito último.

«Holocausto Canibal» tem de ser entendido como parte de uma determinada filmografia e época. É, sem dúvida, um "exploitation", e procura provocar a repulsa e o choque no espectador. O "realismo" vem reforçar essa intenção e, na época, Deodato conseguiu convencer até jornalistas. O espectador atento dos anos 90 não cairá facilmente no truque. Os cineastas de BWP afirmaram o desconhecimento deste filme, mas as semelhanças têm alguma relevância. Para além do ponto de partida, existem outros elementos: uma equipe que parte à procura dos cineastas e que volta com película. No final do «Holocausto» diz-se que o projeccionista vendeu o filme, e foi assim que chegou às mãos dos produtores. Em BWP, é a mãe da "realizadora" que cede as imagens. «C'Est Arrivez…» não têm sido muito usado como meio de comparação, mas as semelhanças também existem. Desde logo, temos três estudantes de cinema (na vida real, entenda-se) a fazerem um filme sobre uma equipe de documentaristas (no filme, os actores usam também os próprios nomes): um é o realizador, outro o homem do som e outro o camaraman. A maior semelhança é um dos cenários do filme belga: um edifício abandonado. No final, existe uma sequência bastante parecida com outra em BWP: o ponto de vista de quem filma, a correr por umas escadas poeirentas abaixo.

Quem pegasse num projecto desta natureza facilmente chegaria a um final como vemos nestas três obras. (Quem não viu algum dos três filmes deverá saltar o resto do parágrafo, para ser poupado aos pormenores). Em BWP e HC leva-se ao limite a suspensão da descrença necessária a aceitar que alguém mantenha a câmara ligada em determinadas circunstâncias. No filme italiano, a loucura e ambição dos cineastas é a razão, no americano existem várias razões, mas nenhuma muito satisfatória (uma delas é o pedido de desculpas, hmmm, comovente). O filme belga fica a ganhar, porque o tom documental é o veículo, não o fim. O plano final de cada um dos três filmes é praticamente idêntico e, como se disse no início do parágrafo, quase inevitável: a última pessoa com a câmara na mão é "eliminada".

Posto tudo isto, convém frisar que admito que tal premissa pudesse trazer algo fresco e novo, mesmo com pretensões de pôr actores a fingir que não são actores. Tal simplesmente não aconteceu. «The Blair Witch Project» é um fingimento que denota o intuito único de ser um filme que parece real, sem qualquer outro elemento redentor. O percurso dos personagens é muito pobre dramaticamente. Em 15 minutos estão na floresta, depois de se tentar delinear as personalidades dos três estudantes sem grande sucesso (como todo o diálogo no quarto). Conversam com meia dúzia de habitantes da povoação, alguns dos quais bastante artificiais (os pescadores não estão mesmo nada à-vontade, com a cana na mão) e pouco depois tem considerações sobre a realidade do mito… Mas se punham a hipótese da bruxa existir, teriam ido para o meio da floresta acampar? O resto são gritos, escuridão, câmaras muito agitadas e pouco mais.

O distribuidor optou por um título muito estranho, traduzindo apenas metade do original. Só faria sentido «O Projecto da Bruxa de Blair». É o que dá copiar os maus exemplos de outros países (neste caso terá sido de França).

Este comentário baseia-se no DVD Região 1 (EUA), lançado em Outubro, dois meses antes de se achar a estreia nacional oportuna.

**
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Publicado on-line em 23/1/00.