cartaz
comentários
coluna
secção informativa
favoritos
arquivo
pesquisa

index

A Última Hora/25th Hour
Realizado por Spike Lee
EUA, 2002 Cor – 135 min. Anamórfico.

Com: Edward Norton, Philip Seymour Hoffman, Barry Pepper, Rosario Dawson, Anna Paquin, Brian Cox, Tony Siragusa, Levani Outchaneïchvili, Misha Kuznetsov, Isiah Whitlock Jr

Poster
Nova Iorque, 2002. Monty Brogan (Norton) vive as 24 horas que precedem a sua recolha a uma penitenciária, onde irá cumprir sete anos de prisão por tráfico de droga. (Algo no sistema judicial americano permitirá que não tenha ficado preso depois da leitura da sentença, supomos). Durante as últimas horas de liberdade, Monty procura o pai, James (Cox) e combina um encontro de despedida com os seus dois melhores amigos, Jacob Elinsky (Hoffman) e Francis Slaughtery (Pepper), onde está também presente a namorada, Naturelle (Dawson), com quem vive. Nesse período de tempo, reflecte sobre a sua vida e os erros cometidos, questionando-se também quem é que o teria traído.

O título da última obra de Spike Lee, «25th Hour», reflecte o tempo limitado do seu protagonista (é algo redundante o esforço do distribuidor em interpretar e simplificar o título). O tempo nunca chega – por muito que queiramos ou precisemos de um pouco mais – e numa situação como a de Monty, à medida que os grãos de areia se precipitam para o centro da ampulheta, é como se a vida estivesse prestes a terminar. Pelo menos a vida que teve até ali, pois é certo que nada poderá voltar a ser como antes.

«25th Hour» fala sobre a escassez do tempo, mas também sobre muitas outras coisas, em particular a impossibilidade de reter “o momento” ou de voltar atrás, àquele momento-chave, quando uma decisão errada foi tomada. A vida de Monty seria melhor se não tivesse sido ganancioso e tivesse sabido parar com os seus negócios ilícitos, meses antes. Ou se, desde logo, tivesse optado por um modo de vida dentro dos limites da lei, como qualquer respeitável cidadão, plenamente integrado na sociedade e ciente das suas responsabilidades para com ela, como os seus amigos: Jacob é um professor, a atravessar uma crise emocional, por se sentir atraído por uma aluna; Francis é corrector da bolsa e vive o gozo do risco, contrariando indicações superiores e pondo em risco o emprego que lhe dá um bom salário e o acesso a uma vida relativamente faustosa. Na vida de qualquer um, surgem momentos em que uma decisão assume o papel de agulha para a felicidade (ou a manutenção por tempo indeterminado do estado das coisas) ou para a ruína total. Será tarde demais para estas personagens ou já terão ultrapassado essa intersecção da via?

Norton
Manhã: o início do último dia de liberdade.
«25th Hour» é, sobretudo, um filme sobre o amor e é, quanto a isso, muito completo e abrangente. No entanto, Lee e o argumentista David Benioff, que adapta o seu próprio livro, não contam uma história de amor convencional, com premissa, estrutura e ritmo a que estamos habituados no cinema mais mainstream (rapaz encontra rapariga, etc.); o casal está junto, o seu encontro tem direito a um mero flashback. «25th Hour» é sobre o amor entre homens (que, num contexto puramente heterossexual, se referencia preferencialmente por amizade). É sobre o amor entre um pai e um filho. É também sobre o amor entre um homem e um cão (sem a ultrapassagem de quaisquer barreiras morais). O amor entre um professor e uma aluna. O amor na fronteira da moralidade e/ou legalidade (há duas relações ou possíveis relações entre homens adultos e raparigas de 17 anos). E por aí adiante. E, poder-se-á ainda acrescentar, o amor por uma cidade, Nova Iorque, ainda que as referências ao 11/09 tenham surgido já depois do guião inicial estar escrito. Esta última vertente é mais um pano de fundo do que propriamente uma “relação”, reforçando o tom de melancolia e tristeza por uma perda profunda, sobre o qual as personagens se movem, podendo assim assumir uma função simbólica: de um momento para o outro, a vida de Monty – como poderia (poderá) suceder com Jacob ou Francis – desmorona-se completamente. Basta um segundo, um acto, uma má decisão, para que tudo mude drasticamente, sem possibilidade de regressar à casa partida, receber 10 euros e dar mais uma volta ao tabuleiro.

Norton Dawson
Prosseguindo esse raciocínio, onde afirmamos que, no seu essencial, esta obra de Spike Lee se debruça sobre relações de amor – no sentido mais puro e espiritual do termo (flutua por aí no ar, por vezes requer uns óculos especiais para ser detectado) –, adicionando-se o facto de apresentar uma narrativa que se consome numa contagem decrescente para o final de uma vida – ou, pelo menos, de um modo de vida – é óbvio que se trata de um filme triste e melancólico. A mestria do texto de Benioff e da encenação e composição de Lee – e adicione-se também a fotografia 'scope de Rodrigo Prieto – conferem-lhe um impacto emocional raro, que o coloca num pedestal a milhas de altura da generalidade da produção recente de Hollywood (e o filme vem pela mão da Disney, um nome que por vezes provoca azia, não havendo Alka Seltzer que valha, mas que, aparentemente, nem interferiu no trabalho dos cineastas, sugerindo apenas que a personagem principal suscitasse tanta simpatia por parte do público quanto fosse possível). A montagem (Barry Alexander Brown) também é algo invulgar, repetindo diferentes ângulos da mesma acção, algo a que não nos habituamos de imediato, como se se tratasse de uma representação do esforço de Monty para reter na memória determinados momentos.

Cox Norton
Noite: Monty janta com o pai, James.
O tempo que se esvai e a necessidade de responsabilização pelos actos de cada um são temas que têm paralelo nas vidas de Jacob e Francis. Um e outro arriscam-se a destruir a carreira e/ou a reputação: Jacob pode estar à beira de se envolver com Mary (Paquin), a sua aluna com “quase” 18 anos, e Francis sente uma forte necessidade de ultrapassar limites, pondo em risco avultadas quantias do patrão em transacções bolsistas. Tal como sucedeu com Monty, basta um passo mal dado para que tudo vá por água abaixo.

Cada um de nós é responsável pelos seus actos, mas o filme de Lee questiona a responsabilidade adicional daqueles que rodeiam Monty. Ou porque nunca foram capazes de o censurar verdadeiramente ou porque, no caso de Naturelle, não só não se preocupou particularmente com o facto dele vender droga, que pode ser consumida por miúdos da escola, como tem desfrutado de uma vida regalada à conta dos rendimentos provenientes de tal negócio. A luta com a culpa e a respectiva assunção dão origem aquela que é talvez a cena mais emblemática de «25th Hour», com Edward Norton em frente ao espelho a “culpar” todas as etnias, credos e grupos sociais que se encontram nas ruas da cidade, atirando-lhes com um rotundo “fuck you!” Spike Lee demonstra uma grande capacidade para transmitir sentimentos contraditórios e complexos com uma cena formalmente simples. Depois de assistirmos a este reconhecimento por parte do protagonista de que o seu inferno não são “os outros” e que a culpa não é do “destino”, mas apenas de si mesmo, é difícil acreditar que esta cena, que existe no livro, não tivesse chegado ao primeiro rascunho do guião que David Benioff mostrou a Lee, sendo este a solicitar ao argumentista que a reintroduzisse (entrevista a Lee – Sight and Sound, 04/03).

Norton
O final da noite reúne Monty com a namorada e os amigos, aos quais se junta uma gatecrasher sem idade legal para consumir álcool.
Estamos perante um filme invulgarmente maduro, destinado a uma audiência adulta e interessada num cinema que levanta questões e possibilita reflectir sobre assuntos sérios. Há humor, disso não há dúvida, talvez mesmo um par de gargalhadas, permitindo retemperar um pouco a atmosfera geral de melancolia e do sentimento de perda irrecuperável.

Além do excelente texto e da visão de Spike Lee, os desempenhos individuais também marcam pontos. Norton – a trabalhar por uma ninharia, num filme de baixo orçamento – tem, uma vez mais, uma boa prestação, compondo uma persongem que expõe os seus receios e a sua fragilidade, de um modo pouco habitual para um protagonista da 7ª Arte. Norton é exemplar, sobretudo porque consegue compor um traficante de droga “simpático” (para júbilo do distribuidor), que não mostra arrependimento de ter traficado droga (exercício: visualize o “Oscar clip” com a personagem lavada em lágrimas, confrontada com um enumerar de pessoas mortas por terem consumido o seu produto), mas sim por não se ter reformado, com a conta bancária recheada com o dinheiro do tráfico, a tempo de se pôr fora do alcance das malhas da lei. Hoffman, no fundo, recupera pedaços de outras personagens que já desempenhou, com igual aprumo. Pepper, o actor canadiano talvez melhor recordado como um sniper americano em «Saving Private Ryan» é, sem qualquer dúvida, um valor em alta e a seguir com a atenção. Dawson, Paquin e Cox permitem manter uma excelente qualidade média do elenco.

*****
classificações


Monumental Saldanha 4. Boa projecção. Foco quase perfeito.

Publicado on-line em 1/5/03.