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O Protegido/Unbreakable
Realizado por M. Night Shyamalan
EUA, 2000 Cor – 107 min. Anamórfico.

Com: Bruce Willis, Samuel L. Jackson, Robin Wright Penn, Spencer Treat Clark, Charlayne Woodard, Eamonn Walker, Leslie Stefanso, Johnny Hiram Jamison, Michaelia Carroll, Bostin Christopher, Elizabeth Lawrence

David Dunn (Willis) trabalha como segurança num estádio de futebol. No regresso de uma viagem de Nova Iorque para Filadélfia, encontra-se no meio de um grande acidente, onde morrem mais de cem pessoas. Apesar da violência da catástrofe, Dunn é o único sobrevivente e não apresenta quaisquer ferimentos.

Elijah Price (Jackson) nasceu com uma doença rara, possuindo uma estrutura óssea extremamente sensível e passível de fracturas. Dono de uma galeria com raridades de banda desenhada e coleccionador de revistas desde criança, contacta Dunn, que vê como alguém no extremo oposto da sua condição física (“inquebrável”, como o título original indica – o nacional é de um despropósito lamentável), e tenta convencê-lo de que é detentor de capacidades sobre-humanas.

A sinopse de «Unbreakable» podia ser mais curta e directa, sem travessões e parêntesis: “um coleccionador de BD tenta convencer um desconhecido de que ele é um super-herói”. Mas tal induziria o leitor em erro em relação ao que se pode esperar do mais recente filme do realizador do aclamado «O Sexto Sentido» (1999). Shyamalan escreveu e realizou, de facto, um “filme de super-heróis”, mas é provavelmente o mais invulgar filme dentro do género. Convencionalmente, tanto na BD como no cinema, introduz-se a história com a origem do herói e o desenvolvimento mostra-lo em acção, a salvar pessoas indefesas e a lutar contra o Mal, concluindo-se com a vitória do Bem ou o adiamento para o número seguinte. Aqui é como se tivéssemos permanentemente a introdução ao “super-herói”, assistindo a uma origem lenta e exposta pormenorizadamente. Daí que se possa extrapolar a possibilidade de sequelas enquanto filmes convencionais de acção e fantasia, mas tal, no entanto, iria trair o espírito de «Unbreakable».

É verdade que a própria banda desenhada tem explorado uma grande variedade de estilos narrativos nas histórias de super-heróis, procurando mostrá-los mais reais e humanos, mas o leitor está sempre a comprar uma revista com um nome e uma personagem definida no topo. Aqui estamos sempre no mundo cinematográfico “real”, onde Elijah surge a tentar-nos convencer de que os super-heróis podem existir.

O tom e o estilo deste filme não são radicalmente diversos d' «O Sexto Sentido», antes pelo contrário. Desde logo, temos Bruce Willis a tentar entender porque é que o seu casamento está a ir por água abaixo (agravado por uma fobia) e a interagir com um miúdo inteligente e sensível – o seu filho, Joseph (Treat Clark, de «Gladiador») –, a caminho de revelações surpreendentes.

A assinatura de Shyamalan é reconhecível. A câmara mexe-se pouco, salvo alguns enquadramentos menos vulgares, oscilando entre o rosto de uma personagem e o do seu interlocutor, ocultos à vez, ou rodando lentamente até corrigir a posição de objectos apresentados de cabeça para baixo. A maioria das cenas desenrola-se de noite, nas sombras, ou à chuva, sob o olhar da objectiva de Eduardo Serra.

Filmado como um drama, sem nunca abandonar um estilo realista ou pedir a “suspensão da descrença” para entrar num mundo de fantasia, com características diferentes do nosso, «Unbreakable» não deixa de incluir referências estéticas que remetem para o mundo da BD, como o “uniforme” de Dunn. Por outro lado, a “acção” é crua (sendo discutível falar na existência de “acção” neste filme) e algumas cenas transportam-nos para os meandros de alguns thrillers modernos, centrados na ameaça de psicopatas homicidas (veja-se a sequência da casa).

Marcas registadas adaptadas podem contribuir para um maior irrealismo de um filme, i.e., somos melhor “convencidos” pela história do filme que mostra notícias na CNN, do que na “DNN” ou numa outra variante. Estes detalhes podem funcionar como distracções. No inicio do filme, apresenta-se uma revista chamada “Active Comics”, com o design da clássica “Action Comics”, onde o Super-Homem surgiu pela primeira vez, sem que se reconheçam traços característicos da personagem. Mas, mais à frente, começam a mostrar-se revistas verdadeiras, com super-heróis “verdadeiros”. Aparentemente, a DC Comics não deu o aval à utilização das suas marcas registadas, ao contrário da Marvel. Assim, não se mostram revistas do Super-Homem, mas apresentam-se capas do Homem-Aranha ou do Demolidor (“Dare Devil”, no original, e as iniciais do protagonista não são igualmente “duplas” por mera coincidência), mesmo que essas personagens sejam referência menos importante no guião.

Um outro elemento paralelo ao filme anterior de M. Night Shyamalan, é uma conclusão que fará o espectador olhar de modo diferente para o filme, no segundo visionamento. Há quem a considere gratuita ou desnecessária, mas parece-me que tudo faz sentido e é coerente nesta estranha história de super-heróis, coberta pela capa de um género mais sério e respeitado. E, uma vez mais, todos os elementos estão presentes desde o primeiro fotograma.

As personagens são credíveis e os diálogos denotam rigor na escrita e o gosto de Shyamalan pelo pormenor. Entende-se que o realizador-argumentista possa ser acusado de algum “show-off narrativo”, mas temos de admitir que se quisesse dar nas vistas, depois do sucesso do filme anterior, não lhe faltaria orçamento para filmar aparatosamente pelo menos três grandes catástrofes, com muitas explosões e mortos (chacinas em filmes sérios ficam sempre bem). Em vez disso, independentemente do tema ou do que pode ou não ser esperado, mas que não concentra em si toda a força do filme, temos um objecto intimista, sóbrio, centrado nas personagens e praticamente sem “efeitos especiais”.

[O parágrafo seguinte, apesar de não focar aspectos essenciais do filme, ou da sua conclusão, pode ser considerado dispensável por alguns leitores que não o tenham visto previamente.]

Há a apontar pormenores que podem não parecer inteiramente convincentes, como Dunn não se lembrar de nunca ter adoecido ou não ter consciência das suas capacidades físicas. Afinal, toda a gente se corta ou cai, sobretudo enquanto criança, e é normal ter-se consciência da frequência com que se apanham constipações ou se é afectado por alergias. Parece poder-se resolver esta aparente incoerência, considerando que Dunn teve, desde cedo, consciência das suas capacidades, mas não conseguiu lidar com elas, preferindo esconder-se na pele de um simples segurança, recalcando essas memórias no seu subconsciente. Isto é coerente com o episódio da piscina, e, sobretudo, com o do acidente de automóvel e o modo nublado como Dunn se lembrava do que aconteceu.

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Publicado on-line em 29/01/01.