O Cinema Gore e de Horror e o Mercado Português

face lift?

Portugal é um país pequeno, com um mercado pequeno e extremamente limitado, e sem capacidade de absorver toda a variedade de propostas cinematográficas que pululam por esse mundo fora. Compreensivelmente ou não, os operadores não arriscam na distribuição de títulos que não têm possibilidades de encontrar um público que garantidamente os pague, assistindo ou alugando-os, o que consubstancia o status quo actual, em que quase só se mostram filmes para o mesmo público médio.

A Atalanta/Medeia, actuando mais na área do cinema independente, demonstrou que se pode mostrar filmes não produzidos pelos grandes estúdios, e aumentar um nicho de mercado inicialmente muito reduzindo. Se não existir acesso a um produto, não se pode esperar que o seu público se manifeste. Este distribuidor/exibidor ganhou a batalha e, anos depois, vemos a Lusomundo a converter o cinema Mundial em Lisboa para concorrer, mais ou menos directamente, com essa salas "temáticas" da Medeia.

Logicamente, quanto mais obscuro for o título que se procura, maior dificuldade se há-de ter em encontrá-lo. Bom, nem sempre. Por vezes surgem títulos sugestivos que são editados em vídeo por acidente ou no meio de algum pacote (principalmente se uma empresa maior distribui títulos de outras insignificantes).

No que diz respeito a produções menos preocupadas com subtilezas estéticas ou artísticas, e mais interessadas em explorar certas perversões ou intenções obscuras escondidas algures numa recôndita zona do cérebro humano, ou apenas em pôr de pé um filme barato cheio de violência barata e pessoas (note o termo politicamente correcto) em trajes menores, ou inexistentes, o mercado português é totalmente impotente. Mas note-se que muitos dos títulos aqui mencionados são, de facto, referenciados como obras com "mérito artístico".


Clássicos do Horror
Dois exemplos, apenas, neste campo, dos títulos mais importantes do cinema de horror: «Massacre no Texas» (1974), de Tobe Hooper e a trilogia dos zombies de George A. Romero - «Night of the Living Dead» (1968), «Dawn of the Dead» (1978), «Day of the Dead» (1985).

O filme de Hooper foi exibido em salas há uns 20 anos atrás, e no Fantasporto mais recentemente (lamenta-se que a cópia aparentasse mesmo ter uns 20 anos), mas onde está a cópia vídeo? A piorar, o filme não existe no mercado inglês porque não houve forma de suplantar o sistema draconiano de censura que aí vigora; se não há violência gráfica, o que cortar? Estupidamente, ,no final dos anos 80, alguém editou em vídeo «The Texas Chainsaw Massacre 2» (1986), também de Hooper, e chamou-lhe... «Massacre no Texas». E esta cópia, do filme com uma das mais sugestivas interpretações de Dennis Hopper, está gravada em mono (o filme foi rodado em 'Ultra-Stereo').


Será preciso ir buscá-las aos EUA?

Dos filmes de Romero, «A Noite dos Mortos Vivos» (um distribuidor mal informado, ou pobre de espírito, duplicou o título para «The Evil Dead», de Raimi) foi visto na TV há alguns anos atrás. Chegou a ser anunciado novamente pela TV pública, mas, como dezenas (centenas?) de outros títulos foi esquecido. Um catálogo do Fantasporto refere que «Dawn of the Dead» foi editado em vídeo pela Lusomundo, com o título «Zombie - A Maldição dos Mortos Vivos». Talvez, nunca se sabe. A ajudar à confusão dos títulos, um filme de Wes Craven, «The Serpent and the Rainbow» (1988) foi chamado «A Maldição dos Mortos Vivos»!

«Dawn of the Dead» será dos filmes com mais versões no mercado, devido a problemas com a censura, , principalmente no Reino Unido e na América, de forma que é complicado dizer qual a versão completa, entre versões 'uncut' e 'director's cut' que, aparentemente, abundam no mercado internacional (e resta saber se a versão mais longa é a "original"). O catálogo supracitado também diz que a cópia portuguesa tem 10 minutos a menos do que a "versão original". Quererá dizer que a Lusomundo, antes de editar «Crash» (1996) censurado já tinha experiência na matéria? Assim parece, e por este prisma talvez seja complicado de saber se queremos mesmo estes filmes disponíveis no nosso mercado. É que mal por mal, censura por censura, no exterior parece circular mais informação.


Cinema Gore
Muitas pessoas poderão perguntar: "mas porque quero eu ver filmes com sangue e desmembramentos?" Pois, mas essa não é a questão fulcral. A questão é poder não vê-los, por opção. A escolha é sempre importante. É adulto? Então deve querer escolher por si, e não sancionar as escolhas de terceiros.

Por aqui, apesar de tudo, sempre tivemos edições vídeo de algumas pérolas, como é o caso de «Re-Animator/O Soro Maléfico» (1985), de Stuart Gordon (de que até se suspeita, mas não de confirma, uma reedição recente), «The Evil Dead» (1983), de Sam Raimi e espera-se para breve a de «Braindead» (1992), de Peter Jackson, que chegou a ser exibido comercialmente este ano. Também de Jackson, anos atrás, foi lançado em aluguer «Bad Taste» (1987), com o título «Carne Humana, Precisa-se» (!!)


«Bad Taste»: Peter Jackson com a faca e o queixo na mão

A proliferação de muitas editoras, na altura do boom do home-video em Portugal, foi responsável pela proliferação de uma razoável variedade de filmes de mau gosto latente (quanto pior, melhor), incluindo as variantes italianas Zombie e Canibais, onde se contam «Cannibal Ferox» (1981), de Umberto Lenzi , «Zombie III» (1988), de Lucio Fulci ou «Holocausto Canibal» (1979), de Ruggero Deodato. Este último, extrema e realisticamente violento, terá conseguido convencer muita gente de que era real, devido ao bem cuidado falso documentário que conseguiu ser. Onde o orçamento faltava simulava-se mau estado do filme, como na cena das indígenas empaladas, ou filmava-se a grande distância (a cena da castração).

Foi também por esta altura que se editaram diversos títulos do giallo dirigidos ou produzidos pelo mestre Dario Argento, como «Demoni» (Lamberto Bava, 1985), «Inferno» (1980), «Phenomena» (1984) ou «Tenaebre» (1982). Nos dias de hoje, «La Chiesa» (1988), de Michelle Soavi, seguidor de Argento, pode ter uma edição vídeo («A Catedral»), mas o superior «Dellamorte Dellamore» (1994) não aparece no mercado. Curiosamente, este título é normalmente mencionando pelo seu "valor artístico", estando bem afastado do género slasher thriller que caracteriza esta tendência italiana.


Cartazes para «Demoni», de Bava e «Suspiria», um dos clássicos de Argento.

Existem centenas de títulos que nunca surgirão no nosso mercado, vindos de cinematografias muito distintas, como a Alemanha, Holanda, Hong Kong ou Japão, por exemplo; países onde existe espaço para gostos tão mais variados. Pode-se exemplificar com os filmes sanguinolentos de Jörg Buttgereit, como o "famoso" «Nekromantik» (Alemanha, 1987) ou «Tetsuo» (Japão, 1988) de Shinya Tsukamoto. A filmografia oriental, particularmente o cinema fantástico de Hong Kong, é tão vasta quanto é lamentável a inexistência dos títulos mais básicos no nosso mercado, nomeadamente as produções de Tsui Hark, de que «A Chinese Ghost Story» (1987) será o exemplo mais notório.

O que dizer de um mercado que ignora os filmes que fizeram John Woo famoso, como «The Killer» (1989), «Bullet in the Head» (1990) ou «Hard-Boilet» (1992), mas se prontifica a lançar para o mercado - para além das óbvias produções de grande estúdio americanas - um telefilme feito para a TV canadiana, versão de um destes filmes clássicos, «Once a Thief» (1991)?

[A Atalanta exibiu cinematograficamente «A Better Tomorrow» (1986), numa versão horripilantemente dobrada em inglês.]


O Caso Troma
A Troma começou a sua actividade em 1974, fundada por Lloyd Kaufman e Michael Herz, e tem-se dedicado a fazer filmes baratos, explorando diversos géneros, com especial relevo para comédias gore condimentadas por mulheres parcamente vestidas, e por cenas de exploração sexual parcamente moralistas. Exemplos destes condimentos serão os interlúdios românticos de «Tromeo and Juliet» (1996), entre Julieta e uma amiga, entusiasta incondicional do piercing, ou de «The Toxic Avenger» (1985), entre um monstro horrivelmente deformado e uma invisual (um verdadeiro hino à beleza interior).

Estas produções fornecem também um catálogo de mutilação extremamente complexo: desmembramentos vários, estripamentos, cabeças esmagadas, olhos furados, cérebros a cair na calçada, etc. Tudo num contexto de grande humor, como não podia deixar de ser.


«The Toxic Avenger», onde se demonstra que na musculação também se pode usar a cabeça.

Entre os títulos produzidos pela Troma contam-se «Surf Nazis Must Die», «Fortress of Amerikkka», «Stuff Stephanie into the Incinerator», «Curse of the Cannibal Confederates», «Ferocious Female Freedom Fighters II», «Demented Death Farm Massacre: The Movie», «Class of Nuke'em High», «Zombie Island Massacre». Entre os mais recentes, promovem-se na página oficial, em http://www.troma.com, «Femme Fontaine: Killer Babe For the C.I.A.», «Beware: Children at Play», «Blondes Have More Guns» e «Cannibal: The Musical».


«Beware: Children at Play» tem a frase promocional "não são crianças, são demónios" e aparenta ser inspirado n' «O Senhor das Moscas». Tudo indica que o acto violento é em legítima defesa.

Em início de carreira, algumas estrelas dos dias de hoje passaram pelos filmes da Troma, como é o caso de Kevin Costner, em «Sizzle Beach, U.S.A.» ou Vicent D'Onofrio em «First Turn On». Mesmo Oliver Stone terá trabalhado num par de produções desta companhia, há muitos anos atrás. Sem dúvida um passado de que todos se orgulharão.

Exploração barata? A Troma foi brindada, pelo seu 20º Aniversário, com uma retrospectiva de três dias no Festival de Cannes, em 1994 (quatro anos depois do nosso Fantasporto apresentar um mini-ciclo).

E onde estão os títulos por cá? No início dos anos 90, um pequena editora - a IPV - editou uma mão cheia de filmes Tromáticos: «Death of the Pee Wee Squad», «Trucker's Wife», «Fortress of Amerikkka», «Sizzle Beach, U.S.A.», «Rabbid Grannies» e «Toxic Avenger». Editou? Bom, comprovativamente os dois últimos. Os outros foram mencionados em sugestivos anúncios em algumas revistas de vídeo, mas nunca se viram em lado algum. (Se alguém viu, por favor acuse-se). Terão existido também referências a «Troma's War» e a «Toxic Avenger II».

Nota: as edições inglesas destes filmes parecem ser censuradas pesadamente. Não em "cenas", mas em minutos; sequências inteiras, um retalho impiedoso. E estamos a falar em edições à partida classificadas '18', para adultos. (Juntamos agora um link para uma página que enumera as edições vídeo britânicas censuradas, nos últimos três anos, com o respectivo tempo cortado).

Terá reparado em diversas referências ao Festival Internacional de Cinema do Porto - Fantasporto. As referências não são intencionais para além da constatação de que a maioria dos filmes referidos neste artigo apenas podem ser vistos aí. Uma vez por ano, uma vez na vida? No ano passado pudemos ver «Tromeo and Juliet» (semanas antes da estreia americana), a mais divertida adaptação da obra de Shakespeare (e se for vista a par com o filme de Baz Luhrmann, mais divertida será, nada obstando à apreciação dos dois filmes), com o bónus da apresentação pelo próprio Lloyd Kaufman. Tudo indica que para o ano poderemos ver o novo «Killer Condom». E quem é que não está curioso de ver um filme com um preservativo assassino?

«Tromeo and Juliet». Frase promocional: "desmembramentos, kinky sex e body piercing: todas as coisas que tornaram Shakespeare grande". Cena de puro romantismo entre Tromeo e Julieta, durante os efeitos da terrível poção bovinóide. "O Tromeo, I love thee. Mouuuuuh."

Podíamos continuar a falar eternamente sobre filmes e cineastas sem espaço no panorama cinematográfico e videográfico nacional. Podíamos falar em John Waters, Hershell Gordon Lewis (o inventor do gore) ou Russ Meyer. Talvez numa próxima oportunidade ou numa próxima secção desta página.

21/9/97


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