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Três Reis/Three Kings
Realizado por David O. Russell
EUA/Austrália, 1999 Cor - 115 min. Anamórfico.

Com: George Clooney, Mark Wahlberg, Ice Cube, Nora Dunn, Jamie Kennedy, Mykelti Williamson, Cliff Curtis, Saïd Taghmaoui, Spike Jonze, Holt McCallany

Março de 1991: fim da guerra do Golfo. Dois soldados americanos, Barlow (Wahlberg) e Vig (Jonze, o agora célebre realizador de «Being John Malkovitch»), encontram um mapa que parece apontar a localização dos bunkers onde Saddam Hussein tem escondido o ouro roubado do Kuwait. A história chega aos ouvidos do Major Gates (Clooney), que convence os dois homens a juntarem-se a ele e ao sargento Elgin (Ice cube), para juntos procurarem a fortuna que os livrará do regresso ao emprego que tinham antes do conflito.

Visão profundamente irónica sobre um conflito armado moderno e sobre o papel dos mass media, em particular de estações de televisão internacionais como a CNN, por onde os soldados sabem mais do que se passa do que directamente no cenário de guerra, «Três Reis» não poupa munições contra qualquer um dos lados do conflito. Não se põe em causa a vilaneza do líder Iraquiano, pouco preocupado com o destino do seu povo, mas, ao mesmo tempo, não se poupa a administração Bush, interessada apenas na realização de objectivos políticos e na aplicação de regras, a todo o custo, mesmo que tal implique a desprotecção ou o abandono à morte certa de elementos de um povo, o iraquiano, perante o qual havia manifestado o apoio e apelado à rebelião contra o líder.

«Three Kings» contém excelentes momentos de cinema. No plano visual, dá-se um tratamento dinâmico à imagem, alternando as cores dominantes sem aviso, inserindo planos sobre-saturados ou com excesso de grão, manipulando ângulos e enquadramentos, o que constitui, possivelmente, um aproveitamento positivo do processo de filmagem Super 35 (extracção de imagem scope de um negativo que não é exposto por recurso a uma lente anamórfica). De inevitável referência são as imagens que ilustram feridas internas provocadas por balas, como se uma câmara estivesse no interior do corpo humano, ou os planos do ponto-de-vista do projéctil, avançando em silêncio contra os alvos, durante momentos suspensos no tempo (algo apresentado de modos diversos em filmes como «Nikita» de Luc Besson ou «Hap Do Go Fei/Full Contact», de Ringo Lam Ling-Tung).

O tratamento visual, que resulta em algumas imagens semi-surreais, tem um intuito marcadamente estético, ajudando a uma mais fácil digestão do filme, mas o melhor nos «Três Reis» é quando a utilização da imagem se submete a critérios dramáticos, em situações de tensão. Não há que atacar a espectacularidade das imagens, com maior ou menor serviço ao guião; se há que mostrar um veículo a capotar, porque não atirá-lo contra a audiência, quase nos envolvendo de terra e pó, ao mesmo tempo que se inundam os canais de som envolvente com o correspondente som ensurdecedor? A ironia das situações e dos diálogos, com ou sem efeitos especiais e/ou sonoros, vale por si, seja no modo como se encontra o mapa do "tesouro", na confusão inicial com um soldado que se rende, no modo como se despoleta uma mina, na literal promiscuidade entre o exército e os media ou no delirante momento da chamada para casa, por parte de Barlow.

Há um momento de particular força dramática, envolvendo civis e os soldados iranianos, e uma crescente tensão, bem construída pelo cineasta, mas, a caminho do clímax, denota-se um certo aligeiramento para que ninguém fique demasiado mal disposto, o que não se pode deixar de lamentar. Isto sucede a partir do momento em que se apresenta a opulenta garagem e se procede para a caravana de carros de luxos e para o pouco efectivo mecanismo narrativo de usar o medo que os soldados têm da mera presença de Saddam. É engraçado, mas parece deslocado do seu meio natural. Essa é uma das fraquezas deste filme, mas outras existem relembrando-nos que estamos no fundo perante uma estrutura de género convencional, apesar dos salpicos de ironia bem carregados e de um tratamento visual estimulante, de onde decorre, por exemplo, o personagem-tipo que identificamos como eleito para desaparecer tragicamente de cena.

Filme apresentado na sessão de encerramento do Fantasporto 2000, curiosamente a estrear no mesmo dia daquele que abriu o festival, «Boys Don't Cry».

***1/2
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Publicado on-line em 19/3/00.