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Doidos por Mary/There's Something about Mary
Realizado por Peter e Bobby Farrelly
EUA, 1998 Cor - 119 min.
Com: Ben Stiller, Cameron Diaz, Matt Dillon, Lee Evans, Chris Elliott, Lin Shaye, Jeffrey Tambor, Markie Post, Keith David, W. Earl Brown, Sarah Silverman, Khandi Alexander, Marnie Alexenburg, Dan Murphy

Ted Stroehmann (Stiller), um estudante de liceu de 16 anos, não acredita na sua sorte quando é convidado pela beldade Mary Jenson (Diaz) para a acompanhar ao baile de finalistas. O espectador não acredita no azar de Ted, quando se vê envolvido num lamentável e doloroso acidente na casa de banho. Isso foi em Rhode Island em 1985. No presente, 13 anos depois, Ted não consegue deixar de pensar em Mary, que não voltou a ver. Aconselhado pelo melhor amigo, Dom (Elliot), contrata um investigador de seguros, Pat Healy (Dillon), para que descubra o seu paradeiro. Mas Healy (e não só…) não consegue resistir aos encantos de Mary e mente a Ted. Há algo em Mary que põe os homens a fazer os maiores disparates.

«There's Something About Mary» segue «Dumb and Dumber» (1994) e «Kingpin» (1996) na carreira cinematográfica dos irmãos Farrelly (o primeiro tem um crédito de realização apenas para Peter), que parecem caminhar para a coroação como Reis do Mau Gosto. Comparações a John Waters não faltam, com a agravante dos Farrelly atingirem uma audiência mainstream, onde a subversão é mais notória (quem procurar «Pink Flamingos» de Waters tem uma ideia mais clara do que o espera, mas «Mary» não precisa de ser "procurado", pois facilmente se encontra num cinema perto de si). Mas não nos deixemos levar por exageros. «Dumb and Dumber» era pouco mais que uma comédia ultra-silly, e o que de mais grosseiro apresentava era um efeito sonoro prolongado. A dupla foi tão mais "sofisticada" que, em 1992, até contribuiu para a série «Seinfeld», co-escrevendo o episódio "The Virgin".

Este filme vai mais longe do que os títulos anteriores da dupla, porque desta vez os cineastas tiveram carte blanche para um produto "R - Restricted", um sério aviso para os pais e responsáveis por menores, não havendo dúvida que se aproveitaram bem as "potencialidades" da classificação. O sucesso do filme nos EUA, e posteriormente por esse mundo fora, levou a que se falasse num relançamento com todas as partes "ofensivas" removidas, para se alcançar um público mais vasto (classificação etária inferior). Supõe-se que seja mais uma piada dos Farrelly. Ironicamente, este é de certa forma um filme "familiar". Os Farrelly alteraram o guião para que o segmento inicial se desenrolasse próximo do local onde cresceram, para assim poderem usar amigos e família em papéis secundários. Há uma meia dúzia de Farrellies referidos nos créditos, onde se inclui o pai dos realizadores, creditado como 'the Artist Formerly Know as Docky'.

Alguns momentos no filme geram um riso lamentavelmente histérico, outros uma jocosidade mais sã, mas é uma comédia bem sucedido do início até ao fim. É importante frisar que muita gente se sentirá ofendida pela escatologia (algo gráfica) aqui presente. Nem todos apreciarão o modo como certas excreções e secreções físicas são usadas com intenções humorísticas. Se é sensível a tais manifestações de mau gosto, fica avisado que poderá detestar o filme. Tal exposição e o humor esquizóide que salpica o filme (e os personagens) está certamente na origem do sucesso de bilheteira. Ao contrário de filmes que conseguem um fim de semana de arromba à conta do "hype" promocional que se constrói meses antes da estreia, «There's Something about Mary» só chegou ao cimo do "top 10" americano dois meses depois de estrear, à conta da word-of-mouth, i.e., a profusão de comentários directos de espectadores a amigos e conhecidos.

É certo que o humor é grosseiro, mas não é propriamente debilóide. Apesar de existirem inegáveis pontos de contacto com «Dumb and Dumber» («Doidos à Solta» - haverá um padrão nestes títulos?), nomeadamente no que diz respeito a problemas de casa de banho ou ao nome da rapariga, esse filme é extremamente inferior e facilmente esquecível. Não estamos perante dois imbecis a fazer disparates e caretas, mas perante pessoas com que mais facilmente podemos identificar como normais (ou próximo). O texto está muito bem articulado, não se limitando a ligar uma série de gags, como muitas comédias "loucas" tendem a fazer. A narrativa base permitiria uma comédia ligeira, perfeitamente convencional, e a história de amor central ao filme mantém o espectador interessado. O guião, a partir de uma história de Ed Decter e John J. Strauss, com posterior rescrita em conjunto com os irmãos Farrelly, faz mais do que despejar grandes momentos de humor. Antecipa-os, prepara-os, reforça-os e prolonga-os. Veja-se, por exemplo o final da sessão de psicanálise com um comentário que parece servir apenas para gerar insegurança sexual no paciente. É uma pequena piada em si, mas quando há uma sequência mais tarde que nos remete para essa cena, este momento de humor tem um efeito mais forte. A forma como se prolongam as cenas mais escatológicas ou humilhantes é impressionante. Quando parece que algo teria de terminar por ali, ainda há mais qualquer coisa que não estávamos à espera. Diz-se que os Farrelly atravessam a linha do bom gosto. Mas eles negam-no, dizendo que isso implicaria fazer filmes "normais", familiares.

«There's Something about Mary» é provavelmente a melhor comédia do ano. Para adultos.

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classificações

As classificações não têm por cá a mesma importância que nos EUA, mas neste campo «Doidos por Mary» parece demonstrar que o sistema de classificação nacional anda a raiar o ridículo. Claro que é um problema dos pais, mas serão eles convenientemente esclarecidos por uma classificação que ninguém parece ligar muito? Como é que um multiplex com 10 salas chega a ter 10 filmes para maiores de 12, quando o conteúdo dos mesmos é completamente diverso? Na sala onde se visionou o filme existiam crianças com almofadas especiais que forneciam a altura extra para que pudessem ver o écran. Tinham obviamente muito menos de 12 anos e estavam acompanhados pelos pais, convencidos da inocuidade do "M/12". (Normalmente é apenas um dos pais, mas deixa-se a análise sócio-cultural para o local apropriado). As quotas que se parecem impor na tradução de calão mais forte ("palavrões") levam-nos a crer que a CCE contabiliza a "linguagem" traduzida e não a original, que a maioria das pessoas, no entanto, percebe (um adolescente que não domina o inglês conhecerá a maioria das "palavras feias"). Se a situação se alterasse talvez se reduzisse a censura na tradução, por desnecessária, que torna ridículos os diálogos de muitos filmes (este incluído). Se 95% dos filmes são M/12, a classificação não serve para nada e urge adoptar um sistema com utilidade prática, sobretudo informativo para os pais. O mesmo já acontece com as bolinhas vermelhas na TV. Quanto algum filme com conteúdo mais "forte", merecendo um aviso especial, for exibido, como é que o telespectador se precaverá depois dos "avisos" terem sido inutilizados pela vulgarização?