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'R Xmas-Nosso Natal/'R Xmas
Realizado por Abel Ferrara
EUA/França, 2001 Cor – 83 min.

Com: Drea de Matteo, Lillo Brancato, Lisa Valens, Ice-T, Victor Argo, Denia Brache, Gloria Irizarry, Naomi Morales

Um casal norte-americano de origem latina (de Matteo e Brancato) prepara-se para o Natal. Depois de assistirem a uma peça na escola da filha, ele tenta encontrar um dos últimos exemplares de uma boneca muito popular para dar à pequena Lisa (Valens). Mais tarde, os dois juntam-se a alguns amigos e preparam embrulhos, mas não se trata de pacotes natalícios, antes de “panfletos” com droga, prontos a distribuir. Na azáfama das celebrações, e tentando ainda encontrar a popular boneca, os dois vão-se cruzar com um individuo cheio de más intenções (Ice-T) que, na melhor das hipóteses, lhes poderá arruinar o Natal.

«'R Xmas» é uma amostra do cinema independente americano que cai no Natal cinematográfico português. Este é o produto de um cinema tão tipicamente independente que só estreia nos EUA um ano depois de estar concluído. Pelo menos no que a esta obra diz respeito não podemos propriamente reclamar quanto às demoras, em relação à estreia no país de origem. Para mais, trata-se de um filme inteiramente dentro do espírito da época natalícia: uma família feliz, que tenta lutar contra uma ameaça externa que põe em risco a sua felicidade ou até mesmo a sua integridade física. É certo que se trata de um casal que ganha o pão de cada dia a traficar droga, mas não será isso o mais importante neste conto natalício.

Abel Ferrara é o autor de obras provocantes e viscerais como «Bad Lieutenant» (1992), «Mrs 45» (1981) ou o já distante «Driller Killer» (1979), mas o seu trabalho mais recente já não tem grande capacidade de provocar ou, por vezes, sequer de prender a atenção do espectador ou de sugerir grandes divagações críticas. «'R Xmas» é uma espécie de conto moral, mas sem fazer questão de apregoar qualquer lição no final, antes, talvez, sugerindo que reflictamos sobre a pequena e modesta história. Na verdade, não acontece muita coisa neste filme. Somos apresentados a um quotidiano de uma simpática família, o seu modo de vida é posto em risco e depois lá vem a conclusão (o que não implica necessariamente que a situação fique definida).

O melhor de «'R Xmas» são os dois actores principais, mais que competentes nos seus papéis de pais carinhosos e negociantes de substâncias proibidas, e a montagem fluída, particularmente nos minutos iniciais, que quase nos embala, enquanto nos leva por bairros perigosos de Nova Iorque, ao mesmo tempo que apresenta a rotina das personagens de Drea de Matteo e Lillo Brancato: há uma mistura continua de imagens, que contraria os mecanismos normais de transição de planos, com múltiplas imagens sobre os pára-brisas ou tejadilhos do carro que cruza as ruas, por forma a criar-se uma sensação de que algo perigoso está para acontecer a qualquer momento. Mas não acontece realmente nada de especial; Ice-T expele alguma ameaça, mas também uma curiosa mensagem moral, que acaba por se sentir desajustada em relação à sua personagem.

Os textos que envolvem o corpo narrativo, situam os factos semanas antes da subida ao poder do Mayor Rudy Giuliani, em 1993. Giuliani iniciou uma carreira ao serviço da Lei, em finais dos anos 70, que o levaria a passar por vários departamentos do Ministério Público dedicados ao combate contra o tráfico de droga e, já como Mayor de Nova Iorque, viria a ser o rosto de uma verdadeira campanha de limpeza da cidade, em diversas vertentes. Se, por um lado, houve alguma perseguição com fundamentos “morais”, fechando ou afastando de certas zonas, estabelecimentos dedicados à exploração de actividades pouco cristãs – como peepshows, bares de striptease, lojas de acessórios sexuais, etc. –, por outro lado, as investidas contra o crime violento e o tráfico de droga viriam a produzir resultados: os índices de criminalidade desceram 57% durante o seu mandato, num âmbito em que os homicídios baixaram uns impressionantes 65%.

O que quer dizer Ferrara com o posfácio? A actividade liberal exercida passaria a ter mais alguns constrangimentos, mas certamente não se iria extinguir. Mais dificuldades para uma pobre família católica se avizinhariam? O realizador tem usado a religião, nomeadamente o catolicismo, como ferramenta ao serviço da redenção de personagens atormentadas, um capítulo onde o exemplo máximo será «Bad Lieutenant», mas aqui pouco mais temos do que o que é costume ver nas famílias mafiosas do cinema, onde a religiosidade e a fé se apresentam como algo obrigatório e incontornável, mas também um factor meramente cultural, hereditário, e que em nada constringe a prossecução de uma actividade imoral e contrária aos preceitos da Igreja ou do cristianismo.

«'R Xmas» é um filme que se vê com algum agrado, mas que, com algum desenvolvimento, poderia transitar para um patamar superior. Podia-se dizer que lhe falta substrato e que se reduz a uma mão cheia de pó; se se espirra, fica-se com a palma da mão vazia e com poucos vestígios da substância. Esperemos que Ferrara venha a pegar num projecto que lhe permita desenvolver mais satisfatoriamente os seus temas ou renovar a sua carreira através de, quem sabe, uma mudança de rumo radical, como a realização de uma sequela de 007 ou de Harry Potter. Harry poderia ser atormentado por imagens de Cristo que o levavam a questionar-se sobre a prática da magia e a respectiva inadequação com preceitos da Bíblia. Por exemplo.

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classificações


Monumental Sala 2. Projecção razoável, enquadramento ligeiramente alto demais.

Publicado on-line em 1/01/03.