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Irreversível/Irréversible
Realizado por Garpard Noé
França, 2002 Cor – 95 min. Anamórfico.

Com: Monica Bellucci, Vincent Cassel, Albert Dupontel, Philippe Nahon, Jo Prestia, Stéphane Drouot, Jean-Louis Costes, Mourad Khima

poster
Depois de Alex (Bellucci) ser barbaramente agredida e violada, Marcus (Cassel) e Pierre (Dupontel) embarcam numa espiral de loucura e vingança, em busca do autor do crime, que os leva até um obscuro clube nocturno. Pierre, ex-companheiro de Alex, tenta controlar a fúria cega de Marcus, que vivia presentemente com a vítima.

Garpard Noé é um realizador que conquistou o rótulo de “extremo” e “polémico” bem antes deste «Irreversível», graças a «Carne», uma curta-metragem de 1991, e «Seul Contre Tous», a sua primeira longa-metragem, realizada em 1998, ambas apresentadas no Fantasporto de 1999. O “herói” desses filmes de Noé é (perdão pela irritante aliteração) Chevalier, um talhante que vende carne de cavalo (o nome é um “subtil” trocadilho), interpretado pelo actor Philippe Nahon, obcecado pela sua filha menor autista. «Irreversível» é, muito brevemente, uma sequela dos filmes anteriores, porquanto no início (ou no fim, conforme o ponto de vista) mostra o Talhante a referir-se aos factos apresentados nos filmes anteriores, semi-nu, prostrado numa cama ao lado de outro indivíduo, enquanto tece comentários sobre o barulho no clube gay, sob o apartamento onde se encontram – cenário a partir do qual se põe de parte a personagem de Nahon e se acompanha Pierre e Marcus.

Cassel Dupontel
O Chevalier de Nahon é um peão das classes baixas e desfavorecidas e a “luta de classes” impregna de certa forma um dos momentos mais fortes do filme, quando o agressor de Alex debita alguns comentários em jeito de justificação – como se pudesse existir alguma justificação para tal acto – sobre a exploração das classes trabalhadoras (onde um lenocína de transsexuais se parece incluir) pelos “burgueses”, que se pavoneiam pelas ruas, com os seus carros de alga gama e roupas caras de designers famosos. Ainda que Noé tivesse tido alguma preocupação com questões sociais, será difícil de imaginar que tal fosse o seu intuito principal ao criar «Irreversível». É mais fácil encará-lo apenas como obra que provoca pelo desejo de provocar, de dar nas vistas, mas tal pode redundar numa visão preguiçosa de um filme ou de uma obra artística de outra natureza. Vicent Cassel afirmou sobre o “escândalo” e a publicidade daí decorrente, que não foram eles, os que trabalharam no filme, que o criaram, mas antes que tal foi construído em Cannes, pelas mesmas pessoas que depois surgiram a fingir-se chocados. Independentemente dos factos – é certo que o elemento choque não há-de chatear nada o realizador – tal afirmação dá sempre para pensar um pouco.

Ainda que víssemos «Irreversível» como um “simples” exercício formal e narrativo, independentemente da criação das personagens, do trabalho dos actores e da história eficaz mas relativamente linear (apenas com pontos de partida e de fim invertidos), não poderíamos simplesmente pô-lo de parte e passar de imediato para algo mais limpinho e/ou convencional (“não estreou um filme do Woody Allen esta semana?”) Trata-se de um filme de visionamento essencial, ainda que encarado no contexto de um certo cinema “transgressor”, fora do circuito (de Hollywood, mas também do chamado “arte e ensaio” francês – dois pólos da exibição comercial em Portugal). É forçado, fabricado? O cinema de ficção é sempre uma construção – de contrário estaria mais próximo de ser um documentário – e os resultados finais dependem sempre de uma grande variedade de factores, principalmente de nos conseguimos abstrair da presença do realizador-manipulador e de nos deixarmos embrenhar no objecto ficcionado. (Ainda assim, há casos, como em von Trier ou em algumas doses de Spielberg, onde os efeitos dramáticos funcionam, ainda que não consigamos remover a imagem de permanente manipulação – mais fluída no primeiro, mais forçada e pesada no segundo.)

Dupontel
A estrutura narrativa invertida não é uma invenção de Noé, nem ficamos com a sensação de que o realizador estava apenas interessado na forma e que se lembrou a posteriori de uma história para a preencher. O método, em abstracto, pode lembrar «Memento» (2001) de Christopher Nolan ou um episódio da série “Seinfeld”, mas alguma pesquisa certamente revelaria diversos outros exemplos. Também Tarantino já havia experimentado com uma narrativa com segmentos desordenados como forma de obter um curioso e semi-subversivo efeito de final feliz/infeliz, conforme o ponto de vista, em «Pulp Fiction» (1994). Noé usa a estrutura narrativa para jogar com as expectativas do espectador e com o seu desejo de ver rapidamente a explicação para os actos que está a presenciar, gradualmente, segmento a segmento, e subverte a nossa resposta emocional ao apresentar primeiro uma vingança violenta, quase-absurda, por parte de personagens que ainda não conhecemos e apenas mais tarde nos apresenta o acto bárbaro que levará (levou) pessoas ditas normais a cometer tais actos. Como reagiriam os reduzem o filme ao desenvolvimento de um conceito de filme-choque se os acontecimentos fossem apresentados cronologicamente? Alguns talvez considerassem que se tratava de um filme que promovia a justiça pelas próprias mãos, o “vigilantismo” – se me é permitido usar tal termo –, ao nível de um filme de acção “fascista”, ao jeito de alguns com ícones como Bronson, Stallone ou Seagal. O certo é que o mecanismo narrativo protela a resposta emocional do espectador, até quase ao final do filme, e, desse modo, acaba por se afastar radicalmente da “manipulação” standard da ficção cinematografada e do estigma de “exploitation”, que alguns lhe podem querer colar, ao mesmo tempo que o remetem para a prateleira mais húmida e mal iluminada do clube de vídeo.

Dupontel Bellucci Cassel
«Irreversível» não é certamente o primeiro filme “comercial” a apresentar violência realista e talvez seja prejudicado por não trazer uma história que, por exemplo, queira ilustrar que a guerra é uma coisa absurda ou algo assim mais politicamente correcto. Conforme elaborado no parágrafo precedente, os actos violentos surgem sem uma prévia “justificação” ou embalo emocional que ponha o espectador, todo contente, a pensar “ora, toma lá!”, perante a execução da vingança, como poderia, eventualmente ser o resultado – em pessoas mais “emotivas” – num filme dos “ícones” acima referidos. A opção por planos contínuos (alguns não integralmente, mas o efeito funciona sempre) reforça o impacto e a sensação de veracidade das personagens e da violência que as afecta, pois, ainda que inconscientemente, estamos habituados ao corte da cena “real” para uma de efeitos especiais, que, por muito que nos impressione, acaba sempre por não ser plenamente convincente. Aqui, alguns efeitos foram adicionados em pós-produção, de forma relativamente subtil (a fotografia suja e escura de alguns planos dá uma ajuda).

Bellucci Cassel
No final, o filme de Gaspard Noé revela-se um amargo ensaio sobre a impossibilidade de corrigir acontecimentos determinantes, estejam ou não na nossa dependência (“o Tempo tudo destrói”). A inversão narrativa permite uma maior reflexão sobre o tema; se a estrutura fosse cronológica, mais facilmente tomaríamos o material como uma simples, ainda que brutal, história de vingança e os temas que permeiam a história de Alex, Marcus e Pierre não seriam tão eficazmente desenvolvidos.

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classificações


Monumental 2. Projecção competente.

Publicado on-line em 00/0/00.