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Gato Preto, Gato Branco/Chat Noir, Chat Blanc
(O título no écran é representado por um desenho com dois gatos)
Realizado por Emir Kusturica
França/Alemanha, 1998 Cor - 130 min.

Com: Bajram Severdzan, Florijan Ajdini, Salija Ibraimova, Branka Katic, Srdjan Todorovic, Zabit Memedov, Sabri Sulejman, Jasar Destani, Ljubica Adzovic, Miki Manojlovic

Num cenário próximo das margens do Danúbio, Matko Destanov (Severdzan) envolve-se em todas as negociatas que pode, invejando a riqueza do amigo Dadan (Todorovic). Com a ajuda de algumas mentiras, Matko consegue um empréstimo do "padrinho" local, Grga Pitic (Sulejman), um companheiro de outros tempos, e de outros crimes, do seu pai, Zarije (Memedov). Os "avôs" já não se encontram muito bem de saúde, mas mantém o discernimento e o bom humor. Matko convence Dadan a ajudá-lo num roubo, mas as coisas vão correr mal, o que coloca o primeiro numa situação de dívida para com o segundo. Dadan aproveita o crédito para negociar o casamento da sua irmã, Afrodita (Ibraimova), com o filho de Matko, Zare (Ajdjni). Zare, claro, não está nada interessado, não só porque não gosta da noiva imposta - conhecida por "anã" e "joaninha" -, mas porque está apaixonado por Ida (Katic), que trabalha num bar das redondezas.

Emir Kusturica volta a pegar em personagens ciganos, neste filme vencedor do prémio para a melhor realização no Festival de Veneza do ano passado, depois de anteriormente ter manifestado a sua intenção de abandonar o cinema, face a acusações de que «Underground» (1995) fazia a apologia dos Sérvios, no seio do conflito entre as diversas etnias da ex-Jugoslávia. Isso não impediu que o anterior filme fosse venerado pela crítica, multi-premiado pelos mais importantes festivais de cinema, com o óbvio destaque para a Palma de Ouro em Cannes, nem que viesse a constituir um relativo sucesso de público - tanto quanto uma comédia falada em Servo-Croata, embebida em parábolas políticas, poderia almejar, num cenário dominado por um produto anglo-saxónico de fácil digestão.

«Gato Preto, Gato Branco» partiu do desejo, de Kusturica, de filmar um documentário sobre a banda que animava os personagens de «Underground». Não é propriamente isso que temos agora a oportunidade de ver, mas a vitalidade e o ritmo da banda sonora dessa obra continuam presentes (infelizmente é uma questão de sorte vê-lo numa sala que se lembre de ligar o som digital, o que poderia abafar um pouco mais o barulho do metropolitano a passar sob os pés da audiência), e acompanham da melhor forma o desvario circense de uma comédia etnográfica desenfreada.

Imagens verdadeiramente surreais, como músicos pendurados em árvores, cadáveres escondidos e conservados em blocos de gelo, animais a digerir calmamente símbolos da civilização humana ou troncos de árvore a atravessar a estrada, enquadradas pela câmara de Tierry Arbogast, cinematógrafo de eleição de Luc Besson; comportamentos obsessivos, como a ingestão de sumo de laranja, querer casar uma irmã à força para satisfazer os desejos de um progenitor falecido ou ver continuamente o final de «Casablanca», em casa, em viagem ou num hospital: são alguns dos ingredientes com que Kusturica cozinhou o seu «Gato», sem as preocupações "sérias" patentes no filme anterior, antes caminhando na direcção de uma comédia pura e directa. Adiciona-se ainda um tom de conto tradicional, com um caminhar para a "moral" de uma parábola saída de tais páginas, elementos patentes, por exemplo, nos personagens da "anã" e do "gigante". (Em relação à Joaninha, é compreensível que o tradutor tenha usado o termo da v. francesa - "coccinelle" - e não o da v. inglesa, a que normalmente se utiliza para traduzir para português filmes provenientes de países de Leste, - "ladybird" - porque qualquer termo em português derivado de "pássaro", no feminino, induziria um humor não considerado pelo guião.)

Claro que existem ligações com «Underground», mas tal sucede, de modo geral, indirectamente. Há, por exemplo, a presença breve de Miki Manojlovic (Marko), o qual usava um gato de forma pouco convencional, cena essa que tem um paralelo aqui, mas com outro animal e com outro personagem (quem não viu nenhum dos filmes, deverá fazê-lo antes de dar largas à imaginação). Os animais, aliás, são elementos importantes, de um ou de outro modo, em ambos os filmes. Um macaco era uma presença frequente no anterior; gatos são testemunhas (e, em determinados momentos, muito literalmente) deste. A água é também um elemento que se repete, com todas as suas potencialidades enquanto símbolo, nas quais, por demasiado fascinantes e com propensão a impelir demasiado desenvolvimento textual, não nos iremos imergir.

Aqueles que gostaram de «Underground» dificilmente não gostarão de «Gato Preto, Gato Branco», mas, de igual modo, não deixam de ser potenciais apreciadores aqueles que desistiram desse filme, devido talvez ao elevado conteúdo de metáforas relacionadas com a cultura e história recente de um país distante(?) ou à longa duração do filme, porque esta obra pretende ser uma comédia e nada mais.

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Publicado on-line em 4/1/99.