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eXistenZ
Realizado por David Cronenberg
Canadá/Reino Unido, 1999 Cor - 97 min.

Com: Jennifer Jason Leigh, Jude Law, Ian Holm, Don McKellar, Callum Keith Rennie, Sarah Polley, Robert A. Silverman, Christopher Eccleston, Willem Dafoe, Oscar Hsu

Num futuro próximo, durante uma encontro destinado a testar o novo jogo "eXistenZ", alguém tenta assassinar a criadora, Allegra Geller (Leigh). Ted Pikul (Law), um pacato estagiário de marketting é incumbido de zelar pela segurança da atemorizada designer. Geller está preocupada, acima de tudo, com os danos infligidos ao programa e solicita a Pikul que se conecte com ela, para poderem jogar e fazer os testes necessários. Mas Pikul é dos poucos que não possuem um "Bio-Port", a ligação na base da coluna que permite ligar os "pods" directamente ao sistema nervoso, fornecendo ao jogador ilusões impossíveis de distinguir da realidade. O casal é perseguido através de cenários que podem, ou não, fazer parte do mundo real.

David Cronenberg foi construindo uma filmografia coerente, centrada em temas como a doença que corrompe o corpo humano e a luta dos protagonistas para lhe sobreviverem. O "ponto-de-vista" da doença também é tido em atenção; é apenas outro organismo - como o Homem - que procura sobreviver e reproduzir-se. As suas primeiras longas metragens com estreia comercial, «Shivers/Os Parasitas da Morte» (1975) e «Rabid/Coma Profundo» (1977), estavam mais próximas do filme de horror convencional, mas continham (contêm) em si elementos potenciadores de reflexão, nomeadamente pelo modo como caracterizam pragas disseminadas através do sexo, que poderiam ser vistas como metáforas à SIDA, se esta doença não tivesse sido identificada apenas meia dúzia de anos depois da primeira dessas obras.

Até «Videodrome» (1983), Cronenberg explorou as suas obsessões a partir de textos por si originalmente escritos, optando então por pegar em obras previamente escritas por outros, começando com «The Dead Zone» (ainda em 83) de Stephen King (em Português: «Zona de Perigo», o filme; «Zona Morta», o livro). Na altura, perante o seu curriculum de filmes "extremos", este foi considerado o filme mais ligeiro e "mainstream". Depois do horror puro de «The Fly/A Mosca» (1986) ou da intensidade dramática de «Dead Ringers/Irmãos Inseparáveis» (1988), a década de 90 apresentaria um Cronenberg mais conhecido por levar ao écran livros difíceis de adaptar: a responsabilidade pelo rótulo viria de «Naked Lunch/Festim Nu» (1991) de William S. Burroughs e de «Crash» (1996) de J.G. Ballard.

Em «eXistenZ», David Cronenberg volta a escrever o argumento que filma. Na sua génese, esteve o desejo de pegar numa situação semelhante à de Salman Rushdie, um homem condenado à morte por um regime pautado por ditames religiosos que não admitem contradições aos seus dogmas. Interessava-lhe também o cenário dos jogos de computador e da realidade virtual e concebeu um mundo em que um "game designer" poderia ser uma estrela pop. Inicialmente, o realizador-argumentista pensava mostrar mais desta fuga à fatwa e menos do "jogo" em si, o que, sem dúvida, resultaria num filme radicalmente diferente. E talvez mais interessante.

Há uma vintena de anos atrás, os filmes de Cronenberg talvez estivessem à frente do seu tempo, mas este «eXistenZ» é algo extemporâneo. O tema não é novo, nem o tratamento que lhe é dado. Aquilo que pode surgir como mais interessante são os elementos cómicos, como as cenas em que se ligam os bioports, que são filmadas como se de hard-core se tratasse. Talvez seja uma resposta aos histéricos que viam "pornografia" em «Crash», o seu filme "erótico" anti-erótico. Seja como for, para quem conhece a sua filmografia, este é provavelmente o seu filme mais preguiçoso. Ao espectador não é exigido muito, para lá de seguir o jogo.

Não haverá muito que analisar, mas não deixa de ser interessante o tratamento dado aos cenários, procurando replicar a lógica de muitos jogos que recorrem a imagem vídeo. (Ao leitor que ainda não viu o filme recomenda-se que salte desde já para o parágrafo seguinte.) Veja-se por exemplo o nome incaracterístico, sem nome comercial, de cada local por onde os personagens passam. É o "Clube de Ski", a "Country Gas Station", o "Restaurante Chinês", etc. O caso da bomba de gasolina é um indicador óbvio da intenção do filme de misturar a realidade e o jogo. Estamos no mundo real, ou talvez não, mas quando estes cenários começam a desfilar remetendo-nos para esse, que surge mais cedo no filme, temos então a pista de que o jogo pode estar dentro do jogo mais cedo do que pareceria à primeira vista.

Algo que não pode deixar de irritar muitos dos que seguem o percurso do realizador, com acentuado interesse ou mera curiosidade, é a colagem a «Videodrome». Os remakes devem ter alguma utilidade - por exemplo, quando existe algum motivo para que não se relance o filme original -, mas espera-se que se assumam como tal. Por outro lado, se é o primeiro argumento "inteiramente" original que Cronenberg escreve desde 1983, só temos que desejar ver alguma… originalidade. Quem conhece o referido filme, já viu James Woods a disparar uma arma feita de material orgânico e a gritar palavras de ordem ("viva a nova carne" por "viva a Realidade"; "morte ao Videodrome" por "morte a Allegra Gelller"), por exemplo. Perante outros paralelismos, como a consola do jogo a ocupar o lugar do aparelho de TV, «eXistenZ» pouco estimulará quem tem presente o que sentiu perante o primeiro visionamento do clássico filme de 1983.

Falta aqui também o choque, o visceral, a intensidade dramática, o desejo de provocar alguma reacção ao espectador. No seio da obra onde se insere, a apreciação reduzida à habitual classificação seria inferior. Em abstracto, enquanto produto de entretenimento, considera-se que este filme não é "a deixar de ver". Certamente existem ainda muitos livros interessantes para adaptar ao cinema. Esperemos que Cronenberg os descubra.

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Publicado on-line em 3/6/99.