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De Olhos Bem Fechados/Eyes Wide Shut
Realizado por Stanley Kubrick
EUA/Reino Unido, 1999 Cor - 159 min.

Com: Tom Cruise, Nicole Kidman, Sydney Pollack, Marie Richardson, Rade Serbedzija, Todd Field, Vinessa Shaw, Alan Cumming, Sky Dumont, Fay masterson, Leelee Sobieski, Thomas Gibson

William Hartford (Cruise) é um médico de Nova Iorque atormentado por visões da sua mulher, Alice (Kidman), a traí-lo com a imagem de um homem com quem ele se arrependeu de não ter tido uma relação extra-marital. Hartford vagueia pela cidade, à noite, com um desejo de transgredir (também ele) os votos matrimoniais e as certezas de uma relação aparentemente condenada à rotina e à aceitação passiva do estado das coisas. As oportunidades vão manifestar-se com a filha de um falecido amigo, prostitutas, mas principalmente no cenário de uma secreta, exclusiva e refinada sociedade secreta.

«Eyes Wide Shut» estreia 12 anos depois de «Full Metal Jacket/Nascido Para Matar» (1987) e, infelizmente, 6 meses depois da morte de Stanley Kubrick. Muito secretismo circundou a rodagem deste filme, que se prolongaria durante dois anos, depois de várias datas de estreia apontadas, e muito se especulou sobre o que exactamente seria o cerne de um dos mais aguardados filmes de sempre. Referiu-se inclusive que teríamos Cruise e Kidman como dois psiquiatras, dedicados a experiências sexuais com os seus pacientes.

A conteúdo sexual do filme conduz a outra questão também largamente referida nos meios de comunicação e textos críticos, por vezes com imprecisões, consubstanciada na imposição pela Motion Picture Association of America (MPAA) de cortes ou aligeiramentos em cenas com actos sexuais "intensos", para que pudesse ser atribuída uma classificação "R - Restricted" (uma espécie de "não aconselhável a menores de 17 anos", que, na prática, por muito ridículo que pareça, permite que qualquer menor possa assistir ao filme se o responsável legal o sancionar). Sem os cortes, seria atribuído um "NC-17" (NC de "no children"), que estipula que nenhum menor de 17 anos poderia assistir a projecções do filme, alugá-lo ou adquiri-lo em vídeo (portanto um "interdito a menores de 17 anos"). O problema das classificações é que, nos EUA, o "NC-17" continua a ter as mesmas conotações do ex-X (em inglês, ler "eqz-eqz"), e para muitas pessoas, corporações e defensores da moral e dos bons costumes em geral, um "filme para adultos" será sempre um filme "para adultos", logo pornográfico, violento, imoral, merecendo ser banido. Assim, "certas" cadeias de TV, imprensa, exibidores, que provavelmente querem ser vistos pelo público em geral como anjos puros imaculados defensores dos valores familiares, não aceitam anúncios/exibem/vendem filmes com mais do que um "R".

Para que o referido "R" fosse atribuído nos EUA, a Warner Bros. teve de censurar cerca de um minuto de cenas com actividade sexual. Estas cenas não são mais explícitas que qualquer mau soft-core que passa nas novas televisões, e que a TVI, em particular, tem cultivado (ao lado de filmes e séries para toda a família). Sumariamente, são três ou quatro planos com movimentações pélvicas entre pessoas nuas. A censura consistiu na inserção de figuras recortadas e sobrepostas, onde a acção está (ou estaria).

Por pressões de grupos religiosos Hindus, a versão britânica está também alterada, e igualmente durante a sequência da orgia. Os referidos grupos sentiram-se ofendidos com a recitação do seu livro sagrado, o Bhagavad Gita, durante as cenas de sexo. A Warner Bros., admitindo grandes prejuízos, cedeu efectuar as alterações necessárias, ao invés de sugerir que a população Hindu não visse o filme. Felizmente há muitos Católicos e Protestantes (só é grave ofender minorias)...

Claro que o que acima é referido, em particular no que diz respeito ao cenário americano, não é um problema nosso, portugueses, economicamente inferiores, mas, por vezes, e graças a uma revolução algo recente, com ideias opostas quanto à valoração moral-social a atribuir a qualquer espécie de censura. Tal não obviou que se especulasse um pouco sobre que versão seria enviada não só para a Europa mas para Portugal, até porque não seria a primeira vez que o nosso pequeno país seria bafejado com o privilégio da "versão Americana" e não com a "versão Europeia". Num paralelo com a (segunda) edição vídeo de «Crash» (1996), a distribuidora assegurou desde logo, nos cartazes promocionais do filme, que estávamos perante a versão "não censurada" do filme, como convinha.

Para quem ainda não se aborreceu com aspectos secundários da exibição de um filme, cumpre agora expor a sua respectiva apreciação. É sempre difícil comentar a obra de um realizador como Kubrick, um dos mais consagrados cineastas modernos, e será fácil de constatar um certo fundamentalismo perante opiniões negativas. "Quem são vocês para criticar um filme do Mestre Kubrick? Vocês que nem sequer fizeram um filme tão bom como o pior dele?" Etc. etc. etc., como se para criticar um filme "pimba" e "chunga" fosse preciso ter também produzido algo de muito "mau".

Pois «Eyes Wide Shut» não é propriamente uma obra-prima. Um dos filmes com a mais interessante fotografia dos últimos tempos, inegavelmente. Os planos são cuidadosamente compostos, e usa-se, em grande parte, iluminação natural e filme com uma sensibilidade adequada. Quanto a este aspecto, Kubrick já havia impulsionado a produção de filme mais sensível e de lentes com maior capacidade de absorção de luz, em particular para «Barry Lyndon» (1975). Esta opção resulta em imagens belas, com cores fortes e contrastantes, e também em algum grão, particularmente em travellings de ou para locais mais mal iluminados de uma sala.

A narrativa está construída de modo a que o espectador confunda a realidade com o sonho ou com visões, ou que pelo menos seja levado a questionar a realidade do que lhe é apresentado. O que impulsiona Hartford a vogar pelas ruas à procura de uma experiência sexual fora do "normal", reduz-se ao desejo da sua mulher ter tido um caso, que não teve e provavelmente não teria, com outro homem. A imagem, do que não aconteceu, desse mero desejo, forma-se na sua mente e ele sente-o não só como uma traição, mas como uma crítica ao seu modo de ver a relação como algo seguro. Não é só ciúme o que move Hartford, mas também o fascínio por possibilidades de satisfação que até então não havia sequer considerado.

O percurso do médico podia ser descrito, numa sessão de psicanálise, como uma sequência de sonhos sobre incapacidade de concretização. Uma série de potenciais parceiros sexuais entram em cena, mas parecem sempre sair por razões inexplicáveis. Sem o humor (negro), aparte momentos como a constante repetição da identificação ("sou médico, vejam o meu cartão"), Cruise lembra-nos Griffin Dunne no «After Hours» (1985), de Scorsese, mas quando entramos na mansão, o cenário é reminescente da «História de O» (1975), sexploitation rasteiro de Just Jaeckin, especialista em "dramas" sexuais como «Emmanuelle» (1974) ou «O Amante de Lady Chatterley» (1981).

«Eyes Wide Shut» foi inspirado num livro de Arthur Schnitzler, próximo de Sigmund Freud, e, segundo se diz, é-lhe bastante fiel, para além da inserção de um par de cenas e do personagem de Pollack, adicionando explicações tidas necessárias no encerrar do círculo exploratório do personagem central. Quanto ao desenrolar do Sonho, tudo não parece senão coerente e natural. O aspecto negativo da obra prende-se com uma certa dificuldade em apreciar a (não) integração de dois géneros cinematográficos (e Kubrick nunca se "especializou" em "géneros", tendo optado por saltar de um para outro, ao longo da sua carreira). Existe material para dois filmes; o "drama" do casal insatisfeito com a relação, com base na monotonia sexual, por um lado, e o "thriller psico-sexual", centrado no médico respeitável que se envolve com uma obscura sociedade secreta, integrando as mais altas personalidades do país (que máscara usaria Clinton?), com o risco da própria vida. Kubrick, sem dúvida, optou pelos conflitos internos dos personagens, afirmando aquela relação como o mais importante e a razão de ser do filme, com as suas excessivas duas horas e 40 minutos, pondo em causa a validade do referido segmento, que ocupa uma parte substancial do filme.

Umas palavrinhas para o casal Cruise. É difícil discordar com a opinião geral, mas a verdade é que o que se tem escrito - Kidman melhor do que Cruise, apesar de ter menos tempo de écran - é uma mera decorrência do facto de que ela é melhor actriz do que ele, pois em «EWS» não se vislumbram interpretações particularmente brilhantes. Aliás, Kidman sob o efeito do álcool ou haxixe é algo artificial.

Sendo por natureza desconfiado deste género de coisas - processem-me - tenho alguma dificuldade em digerir a facilidade com que se afirma que Kubrick tinha mesmo acabado de preparar a montagem definitiva do filme antes de falecer. E que tinha preparado também, os elementos a usar na versão americana censurada, bem como o modo de os integrar no filme, por prever que não conseguiria entregar o "R" a que estava obrigado contratualmente (esta é a parte mais difícil de aceitar, porque muitos observadores afirmaram que o MPAA não imporia facilmente um "NC-17" a um filme de Stanley Kubrick). Talvez não valha a pena especular. Kubrick era uma das excepções, no que toca a realizadores com direito ao "final cut", e não se poderá (nunca?) saber se a montagem seria diferente, caso ele fosse vivo. Independentemente disso, «Eyes Wide Shut» é um objecto duplamente raro que merece ser visto em sala: é um filme "artístico" custeado por uma "major" americana e é um Kubrick

***1/2
classificações

Publicado on-line em 21/9/99.