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As Faces de Harry/Deconstructing Harry
Realizado por Woody Allen
EUA, 1997 Cor - 95 min.
Com: Woody Allen, Billy Crystal, Demi Moore, Robin Williams, Judy Davis, Elisabeth Shue, Kirstie Alley, Bob Balaban, Richard Benjamin, Eric Bogosian, Hazelle Goodman, Mariel Hemingway, Amy Irving, Julie Kavner

Harry Block (Allen) é um neurótico escritor de sucesso, com três ex-mulheres e o dobro dos psiquiatras. O seu modo de escrita parte da utilização das pessoas que o rodeiam - algo que não é propriamente original no âmbito da cinematografia de Allen -, mudando-lhes os nomes e acrescentando pormenores cómicos improváveis, o que não chega para evitar reacções violentas, como a de Lucy (Davis), sua amante enquanto casado com a irmã dela, Jane (Irving). Depois de se apaixonar por uma mulher mais jovem - a originalidade de novo -, Fay (Shue), para desespero de Lucy, apresenta-a ao seu grande amigo Larry (Crystal), por quem ela se apaixona, para seu desespero. Entretanto, Block irá ser homenageado pela faculdade que o expulsou, e para acompanhantes tenta levar o filho (Eric Lloyd) - mas a ex-mulher Joan (Alley) não quer negociá-lo -, um amigo (Balaban), doente ou talvez não, ou mesmo uma prostituta. (Goodman).

Uma das coisas que impressiona ao ver «Deconstructing Harry», é a capacidade de Woody Allen, para nos trazer algo que apesar de ser "mais do mesmo" continua a ser divertido, original, muito bem escrito e filmado. Os temas do filme são recorrentes, mas este é muito mais do que um remix. O escritor com bloqueio (que coincidência chamar-se Block), em constante terapia psicanalítica, em luta com os personagens das suas histórias ou com as pessoas com que realmente se relaciona, uma vez que o próprio começa a confundi-las, é agora mais "radical", por comparação com os personagens centrais na anterior obra de Allen. O sexo nunca foi assim explorado e a linguagem nunca esteve sequer perto do que sai da boca dos inúmeros actores que desfilam durante a hora e meia do filme, forçando o tradutor a puxar pela imaginação (pouco fértil, diga-se en passant).

Harry Block tem imensas dificuldades em viver no mundo real, preferindo refugiar-se na ficção que escreve. Mas é o real que ele transporta para a ficção, e com a profunda promiscuidade entre as duas realidades (paralela à dificuldade em ser fiel), pode-se quase considerar, inversamente, que é a ficção que se refugia na realidade. É através das imagens da ficção, dos diversos segmentos e contos saídos da Remington portátil do escritor, que vamos conhecendo os recantos obscuros da sua psique, num complexo processo de descontrucção, removendo tijolo a tijolo (block by block, Block by Block), até que o núcleo esteja exposto.

Esta fragmentação narrativa é acompanhada por uma montagem com momentos quase esquizofrénicos, com frequentes cortes na continuidade das cenas ou com a repetição exaustiva das mesmas imagens, a começar nos créditos iniciais, com a chegada de Judy Davis (o taxista não reclamaria certamente da gorjeta). Ao resultado final da técnica utilizada não será alheio o bom entendimento que Allen tem com Susan E. Morse, creditada com a montagem da maioria dos seus filmes.

A seriedade de «Deconstructing Harry» é delimitada convenientemente. A veia cómica de Allen sobrepõe-se e entrega algumas das suas frases e gags mais divertidos de sempre, particularmente na sua área favorita: a religião. Será difícil a escolha entre um aparelho de ar condicionado e o Papa? E quem mais poderia conceber uma questão existencial deste teor? O filme é pois muito mais do que uma lufada de ar fresco para agitar as ondas em que navega a actual exibição cinematográfica nacional. Mas não nos afundemos mais em metáforas baratas.

Nota: numa clara tentativa de agradar a uma audiência mais vasta, o tradutor assegurou-se que mesmo pessoas que nunca tenham ouvido falar de alguém chamado Kafka possam entender e divertir-se com o filme. De futuro, considera-se a utilização de dois écrans, funcionando o segundo para as "notas de rodapé", ilustrando questões culturais difíceis como a referida.

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