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Cidade de Deus/Stadt Gottes/La Cité de Dieu
Realizado por Fernando Meirelles
Co-realizado por Katia Lund
Brasil/Alemanha/França, 2002 Cor – 130 min.

Com: Alexandre Rodrigues, Leandro Firmino da Hora, Seu Jorge, Matheus Nachtergaele, Philippe Haagensen, Jonathan Haagensen, Douglas Silva, Roberta Rodriguez, Renato de Souza, Jefechander Suplino

Poster Cidade de Deus
Desde moleque, eu sempre quis ser fotógrafo, só que o destino me colocou aqui: na Cidade de Deus. Naquele tempo, eu pensava que os caras do Trio Ternura eram os bandidos mais perigosos do Rio de Janeiro, mas alguém roubou o lugar deles. O Zé Pequeno sempre quis ser o dono da Cidade de Deus... Assim narra Buscapé (Rodrigues), a saga do tráfico de droga e do reinado da violência, num bairro situado na zona oeste do Rio de Janeiro, a partir de finais dos anos 60 (os primeiros moradores começaram a ocupar o local em 1966), até ao início dos anos 80, em três segmentos isolados, narrativa e esteticamente.

“Cidade de Deus”, o livro de Paulo Lins, foi editado em 1997. Tem 550 páginas e 250 personagens. Para chegar ao texto para cinema de «Cidade de Deus», o realizador Fernando Meirelles e o argumentista Bráulio Montovani tiveram de enfrentar algumas dificuldades. Seria demasiado fácil retirar e destacar uma história do emaranhado narrativo de Lins e transformá-la num filme, mas Meirelles preferiu o caminho mais difícil, mantendo uma maior fidelidade à complexidade do texto original, procurando abarcar várias décadas e dezenas de personagens, para que fosse o conjunto de vozes e de situações a traçar o quadro mais alargado de uma dura realidade brasileira. Os vários capítulos ou segmentos inserem-se numa estrutura tripartida, com a chegada dos moradores e a introdução do terror gerado por grupos criminosos de menores. Na altura, Buscapé revela uma espécie de admiração pelos bandidos do Trio Ternura – onde se incluía o seu irmão, Cabeleira (Jonathan Haagensen) – mas o passar dos anos vai trazer muito pior, à medida que o tráfico de droga se torna a maior fonte de rendimento dos marginais e os “soldados” são cada vez mais novos e fáceis de recrutar e um arsenal de armas se pode reunir sem dificuldades.

Silva
Dadinho (Douglas Silva) revela propensão para a violência desde muito novo.
No terceiro e último segmento de «Cidade de Deus», onde começamos e aonde voltamos findos os flashbacks, a câmara de Meirelles e a montagem de Daniel Rezende tornam-se mais nervosas, à flor da pele, tal como a violência, que pode despoletar a qualquer momento em qualquer beco da favela. Mas o ritmo do filme nunca abranda e os 130 minutos de duração mal se notam. A estética visual – câmaras em movimento, montagem rápida – e o som agressivo, têm tendência a ser difíceis de digerir por alguns dos que fazem uma análise do cinema com base em ditames mais conservadores, e que, por vezes, colocam obras radicalmente diferentes sob os mesmos rótulos redutores de “pós-moderno” ou “estilo MTV”. Fernando Meirelles veio da publicidade e certamente usou essa formação em favor do seu trabalho no filme, mas as opções estéticas são adequadas, não apenas para agarrar a audiência, mas também como modo de condensar e apresentar uma narrativa extensa e recheada de personagens e situações diversificadas. A montagem, que por vezes introduz uma história, a que só voltaremos mais tarde, depois de terminarmos de assistir àquela que acabou de ser cruzada, reforça o tom épico do filme e mantém a audiência em suspenso, substituindo a linearidade narrativa por uma narrativa ramificada, em espelho.

Tu consegues!
Uma dura cerimónia de iniciação ao crime.
Existe violência em «Cidade de Deus», mas só o espectador sem qualquer ideia formada sobre a temática, julgando, pelo título, tratar-se de alguma obra religiosa concebida para a época da Páscoa, poderia sentir que a mesma existe em excesso ou é “gratuita”; o conceito e a realidade das favelas e do domínio dos traficantes são demasiado violentos, e filmar uma história desta natureza (baseada na realidade e em histórias reais) sem violência, seria entrar no campo da ficção científica, da abstracção ou da censura. Este não é sequer um dos filmes mais violentos graficamente, produzidos nos últimos anos, a chegar ao circuito comercial, e se há poder de chocar a audiência, o mesmo não advém do derramar de sangue ou dos resultados dos inúmeros tiroteios, mas antes da encenação de alguns dos momentos mais tensos, como a cena em que um miúdo é coagido a disparar sobre outro ou se dá a escolher a uma vítima, igualmente de tenra idade, o local do corpo onde quer ser baleada.

Para quem prefira esconder-se da realidade por detrás das guloseimas adquiridas num balcão de multiplex, o filme permite um nível de leitura muito básico, enquanto veículo de acção e entretenimento (ainda que me pareça ser necessário um grande esforço mental para se ficar por aí). Para todos os outros que aceitam o tratamento estético como um meio adequado para contar a história, o prazer em assistir a «Cidade de Deus» é outro, com o bónus acrescido de estarmos perante cinema de qualidade em português.

Rodrigues
Finaliza-se referindo que não é possível deixar de registar o trabalho dos pequenos autores, recrutados de várias favelas, além da própria Cidade de Deus, e que passaram por um intenso estágio, com coordenação de Fernando Meirelles, Katia Lund e com o precioso auxílio de Guti Fraga, director do grupo teatral Nós do Morro, situado numa favela da zona sul do Rio de Janeiro, que teve um papel central na selecção das 200 crianças que participaram no filme, a partir de um universo de dois mil candidatos. Lund já havia realizado um documentário nas favelas e tinha contactos com as comunidades, daí que o seu trabalho se tenha revelado essencial (recebe um crédito de co-realizadora sui generis, pois não trabalhou de facto atrás das câmaras). Depois da selecão e formação dos actores, entrou em cena Fátima Toledo que caiu cada actor ao encontra da sua personagem.

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classificações


UCI El Corte Inglés.

Publicado on-line em 27/4/03.