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Sangue por Sangue – New Director's Cut/Blood Simple
Realizado por Joel Coen EUA, 1983 Cor – 97 min. Com: John Getz, Frances McDormand, Dan Hedaya, M. Emmet Walsh, Samm-Art Williams, Deborah Neumann, Raquel Gavia, Van Brooks
Abby (McDormand) decide abandonar o marido, Julian Marty (Hedaya). Entretanto, inicia uma relação com Ray (Getz), que trabalha no bar de Marty. Este contratou um detective (Walsh) para os seguir. Sentindo-se humilhado pela situação, Marty prefere vê-los mortos.
O primeiro filme de Joel e Ethan Coen permanece o melhor da dupla e o tempo não é seu inimigo. Tal como diz “Mortimer Young”, introduzindo esta versão restaurada, «Blood Simple» continuará “para sempre jovem”. O enredo parte de uma premissa simples e frequente no film noir: um triângulo marido-mulher-amante, do qual se quer eliminar um ou dois dos vértices. O que os Coen magistralmente constroem é uma complexa teia de relações entre personagens, ligadas pelo engano do que cada um pressupõe que o outro fez ou não fez, conduzindo-os por caminhos sinuosos. Há casos em que, por exemplo, se sustém uma comédia ou um drama romântico com base no engano de alguém que julga que o outro(a) prefere um terceiro, algo que se destruiria com uma simples questão directa, colocada por um protagonista ao outro. Mas a escrita dos Coen sempre esteve num nível acima dessas fraquezas narrativas. As personagens agem isoladamente e o modo como o fazem faz sentido, tendo em conta a informação (limitada) de que dispõem sobre os acontecimentos.
A atenção ao pormenor é notória na obra dos irmãos Coen, e «Blood Simple» é um bom exemplo da utilização de pequenas coisas que passam despercebidas à primeira vista, mas que têm uma importância fulcral para o desenrolar dos acontecimentos. Um simples tropeção pode também ser integrado na construção da história, de um modo que contribui para a naturalidade e credibilidade da trama. É vulgar a cena em que alguém tropeça num corpo, como método para que a personagem descubra que houve um homicídio e para inserir um plano de choque do rosto, precedido por um corpo ensanguentado. Os Coen não seguem essas convenções – o “choque” não é motivado pelo corpo, que já vimos antes do protagonista –, demonstrando que se consegue agarrar o público a uma história com uma continuidade de acontecimentos que poderiam suceder na realidade e não com o que costuma suceder no cinema. Um pormenor como o tropeçar num objecto, que parece quebrar a continuidade lógica do que esperamos ver, é essencial para a resolução do filme.
Não existirá uma personagem verdadeiramente malévola em «Blood Simple», ou, dito de outro modo, não é o “mau” da fita que acompanhamos até ao final, em conflito com os “heróis”, nem aqui sequer poderemos recorrer a esses rótulos. Às personagens é dada vida própria, como se cada uma tivesse o seu filme. Sabemos que Joel e Ethan Coen fabricam a trama ao mais pequeno pormenor, mas a qualidade dos diálogos e a perfeição do texto, sugere um resultado natural de uma interacção entre papéis escritos isoladamente, com pontos de vista que nunca se parecem formar por conveniência do argumento. É inevitável que cada uma das personagens pense e aja assim.
O estilo visual dos Coen também não atrapalha a história, apesar de recorrerem a métodos que, noutro contexto, seriam mal vistos por quem costuma ter uma perspectiva demasiado literária do cinema. Em parte por inspiração decorrente de uma colaboração recente com Sam Raimi, em «The Evil Dead» (1982) – onde Joel foi assistente de montagem –, em «Blood Simple» existem alguns planos em que a câmara é colocada sobre uma simples tábua para poder mover-se, “flutuando” sobre obstáculos, como um bêbado adormecido sobre o balcão. Noutra ocasião, a câmara aproxima-se violentamente dos actores, parecendo quase querer derrubá-los. Mas, de um modo geral, o ritmo do filme (e a actividade da câmara) é pausado, lento, permitindo o respirar do texto, que é aqui a verdadeira estrela – sem querer tirar o mérito ao trabalho dos quatro actores que o sustêm, que também merece destaque, em particular a composição do desprezível detective privado, por M. Emmet Walsh, e o patético Marty, por Dan Hedaya.
O debate sobre o que é ou não é um formalismo gratuito por vezes é aborrecido. Há momentos em «Blood Simple» que podem ser vistos de um modo ou de outro. Recordo-me de uma “queixa” sobre «Os Suspeitos do Costume», devido a uma transição de uma caneca de café para uma gruta, junto ao mar. Dizia o “queixoso” de que tal formalismo em nada servia a narrativa. Bem, levando isto ao limite, poderíamos dizer que a imagem em nada serve a narrativa e que um guião seria mais que suficiente (João César Monteiro talvez concorde). Aqui temos um par de transições que independentemente de “servirem” a história, são visualmente agradáveis. Uma delas, pouco relevo terá – é realmente apenas “cool”. Mas a outra ajusta-se perfeitamente no fluir da história, acompanhando o desgaste emocional de Abby, ao ver-se confrontada com os acontecimentos – ou com a sua visão parcial dos mesmos. Essa sequência é fascinante e, devido à perfeição com que é executada, pode transmitir alguma confusão a quem piscar os olhos no momento errado: Frances McDormand deixa-se cair, com a câmara a acompanhá-la, uma sombra passa no seu rosto, acabando por se quedar já noutro local. O segundo plano continua o mesmo movimento da câmara e da sombra, sendo praticamente impossível notar o corte num primeiro visionamento. Tudo habilidade com a câmara e com a montagem (que os Coen também supervisionam, assinando sob pseudónimo); nada de efeitos visuais, nada de pós-produção digital. Mas, quanto a isto, suspeito que o senhor Young terá uma opinião diferente.
Esta versão de «Blood Simple» é ligeiramente diferente da original, estreada em 1985, nos EUA. O epíteto de “New Director's Cut”, que acompanha o título português, será correcto, uma vez que é natural que os Coen tenham tido o “final cut” numa produção independente de baixo orçamento. 15 anos depois – esta montagem estreou em 2000 – decidiram limar umas arestas. Apesar de haver sérias indicações de que tal se poderia resumir a uma brincadeira dos manos, tal como a introdução e o trailer que abrange o restauro, referindo a remistura de som no moderno processo “Ultra-Ultra-Stereo”, e a personagem do “restaurador” Mortimer Young, há, de facto, uma montagem ligeiramente diferente. [Ultra-Stereo era um recurso mais barato de produções independentes que queriam utilizar uma pista de stereo surround, sem pagar a utilização do nome e da tecnologia Dolby.]
Não creio que alguma coisa tenha sido acrescentada, para além da remistura sonora e da inserção de novos efeitos sonoros, mas cortaram-se diálogos para nos levar mais rápido ao que interessa, nomeadamente envolvendo a personagem de Maurice, que talvez tenha agora sido visto como o quinto vértice de um quadrado perfeito. O corte mais notório ocorre por volta dos 10 minutos de filme, quando ele agarra a moeda de um cliente que se preparava para usar a jukebox, sem qualquer conversa. Na versão original existe uma troca de frases curtas entre os dois, em que Maurice lhe pergunta se sabe que noite é aquela (“sexta-feira” – “certo, e que noite é sexta-feira?” – “sexta-feira...?”, etc.) Penso que se encurtou também o diálogo entre Maurice e Abby, quando esta o procura para falar sobre os aparentes problemas entre Marty e Ray. Maurice diz várias vezes que se “retirou” e dá os seus motivos. A cena em si até poderia ter sido completamente removida, pois serve apenas para que Abby saia de casa.
A estreia de «Blood Simple» também inaugura uma renovação do som no Cinema Ávila, usado pela Medeia para reposições e divulgação de cinematografias fora do circuito, embora este não seja o filme ideal para ilustrar tal mudança. O exibidor poderia aproveitar para afinar a projecção, para que as respectivas janelas não parecessem cartão recortado, certificando-se também que o enquadramento é o mais correcto possível, o que não me pareceu acontecer, com uma projecção algo larga, mas com as legendas a caminho do meio do ecrã (ou talvez a Ecofilmes não as tenha colocado no melhor sítio).
Publicado on-line em 3/02/02.
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