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Bem me Quer... Mal me Quer/A la Folie... Pas du Tout
Realizado por Laetitia Colombani
França, 2002 Cor – 100 min.

Com: Audrey Tautou, Samuel le Bian, Isabel Carré, Clément Sibony, Sophie Guillemin, Eric Savin, Michèle Garay, Elodie Navarre, Catherine Cyler, Mathilde Blache

Poster
Bordeaux, tempo presente. Angélique (Tautou) é uma jovem estudante de arte, perdidamente apaixonada por Loïc, um reputado cardiologista de 35 anos. Ele é casado, mas Angélique, cega pelo amor, não deixará que nada interfira na relação. David (Sibony) preocupa-se com a obsessão da amiga e tenta, com pouco sucesso, convencê-la de que o relacionamento com Loïc não tem futuro, uma vez que ele não quer deixar a mulher ou colocar a carreira em risco.

Laetitia Colombani assina com este «Bem me Quer... Mal me Quer» a sua primeira longa-metragem, depois de duas curtas produzidas pela Lazennec (tal como o vietnamita Tran Anh Hung, antes de dirigir a «O Odor da Papaia Verde»). Na escola de cinema estudou aspectos técnicos do processo cinematográfico, incluindo iluminação e efeitos especiais, aí escrevendo uma tese sobre loucura na 7ª Arte, tema que daria sequência ao argumento que assina para este filme, no qual viria a contar com a colaboração de Caroline Thivel na escrita dos diálogos. A realizadora é também actriz, chegando a considerar o papel principal de «A la Folie...» para si mesma, mas desistindo depois de ponderar o esforço que tal implicaria. Fez bem, e agradecemos-lhe, pois a personagem assenta como uma luva a Audrey Tautou, com o seu misto paradoxal de fragilidade e de ameaça.

Audrey Tautou
A apaixonada Angélique (Audrey Tautou), aspirante a artista.
«A la Folie... Pas du Tout» tem uma estrutura narrativa que sugere que o espectador parta para o filme sabendo muito pouco sobre o seu desenvolvimento. É assim que faz sentido e é assim que os cineastas querem que seja, o que não quer dizer que quem escreve sobre o filme tenha a sensibilidade necessária para evitar ser demasiado descritivo ou, pura e simplesmente, arrancar um comentário pegando no filme pelo meio, referindo-se a factos que irão (ou iriam) surpreender o espectador. Quando, por outro lado, se considera que os leitores talvez até leiam textos desta natureza antes de ver os filmes, acabamos por escrever menos do que o costume ou a encher linhas e linhas de texto com observações vagas ou observações sobre observações (como este parágrafo). Em todo o caso, por aqui prefere-se escrever pouco sobre um filme, a usar 80% do espaço com a sua descrição, cena a cena.

O filme de Laetitia Colombani assenta no argumento bem delineado e cuidadosamente depurado, mas a realizadora não deixa de se preocupar com aspectos visuais — como a utilização da cor, reflectindo pontos de vista e evoluções do sentir das personagens. Até talvez dois terços da sua duração, somos surpreendidos com o engenho com que o texto está construido e por nos termos deixado levar pelo angélico sorriso de Audrey Tautou, mas, à medida que nos aproximamos do final, as coisas tornam-se menos subtis. Estamos perante um caso de “sobre-escrita” do argumento. Para desenvolver este aspecto, que realmente impede que «A la Folie...» possa ser um grande filme, será necessário descobrir o “segredo” da sua arquitectura narrativa, de modo que avisamos o leitor que não deve ler os parágrafos que se seguem antes do visionamento da obra em causa. (Para tornar o texto visível, seleccione-o com o rato.)

Samuel Le Bihan
Loïc (Samuel Le Bihan) à beira de um ataque de nervos.
A construção do texto é quase matemática, em espelho: na segunda metade do filme revisitamos os acontecimentos pelo ponto de vista de Loïc e entendemos que coisas que demos por certas afinal não eram exactamente assim. A realizadora assume uma certa inspiração n' «O Sexto Sentido», mas não é por esse prisma que vamos desvalorizar o seu trabalho. Desde sempre se fizeram filmes em que se vem negar aquilo que foi sugerido num momento anterior, forçando a uma reinterpretação por parte do espectador; o que importa é se a história está bem escrita, se não se atira a lógica às urtigas e se as personagens são credíveis ou estão apenas a servir um texto armado em esperto. A técnica mais usada, ao jeito do filme de Shyamalan, sustém a revelação pela maior parte da duração do filme, guardando a reviravolta para o final, fornecendo dados para a descodificação do material precedente ou apresentando uma breve montagem com um ponto de vista que explica e reinterpreta o que vimos. Aqui, a divisão de pontos de vista (o delírio de Angélique em oposição à realidade, que conhecemos pela perspectiva de Loïc) é feita mais cedo, contando-se a história duas vezes e revisitando diversas sequências sob outra luz. O problema, a que nos referimos no parágrafo anterior, prende-se com a necessidade de criar os pontos de contacto entre as duas “histórias” de modo a que tudo se ajuste muito bem e nós todos digamos, espantados: “ah, então foi isso que aconteceu!”.

Depois de passarmos pela reencenação de vários quadros, há situações que se aferem demasiado artificiais, especialmente aquela que mostra Loïc a “procurar” Angélique em casa. O ponto de partida da cena é quase absurdo. Que se descubra que o leite acabou a meio da noite não será invulgar, mas quantos de nós iriam incomodar um vizinho, tarde e a más horas, por causa disso? Outro momento é o confronto entre o médico e David, que não funciona, nem depois do trabalho de construir a falta de profissionalismo da assistente do consultório. Por outro lado, os restantes elementos encaixam bem e o momento do primeiro contacto entre os dois “amantes”, na sequência daquilo que já sabemos nessa altura, até nos toca uma corda emocional.

Audrey Tautou
Audrey Tautou olha o vazio.
Nos momentos finais, o filme torna-se demasiado thriller, i.e., improvável e recusando-se a terminar. Mas, enfim, se nesse momento se abraçou o género, porque é que não se há-de fazê-lo? «Bem me Quer... Mal me Quer» permanece um entretenimento razoável, acrescentando-se como ponto positivo o facto da realizadora-argumentista ter optado por não mostrar os momentos de violência, conseguindo, ainda assim, transmitir a gravidade daquilo que não vimos, permitindo, simultaneamente, que os actores trabalhassem as personagens de forma mais subtil (por oposição a fazerem esgares homicidas com uma faca na mão, por exemplo).

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Publicado on-line em 11/2/04.