Censura, Parte III: Um Vídeo Anormal

Não repita isto em casa.

O filme «Normal Life», de John McNaughton («Henry, A Portrait of a Serial Killer») foi lançado no mês de Outubro em Portugal, directamente para o mercado vídeo, com a chancela da Lusomundo e com o título «O Lado Obscuro da Vida». O filme relata a história, vagamente baseada em factos reais, de um casal que procura a todo custo suster uma relação que, desde a cena inicial, se sabe que estar condenada. Chris Anderson (Luke Perry) é polícia quando conhece Pam (Ashley Judd), uma mulher que se vem a mostrar emocionalmente instável, a caminho da auto-destruição. Ele acaba por enveredar por uma carreira de assaltos a bancos, a que ela mais tarde se junta.

Infelizmente, a cassete video que a Lusomundo editou tem 89 minutos, menos cerca de 10 minutos (já descontando a aceleração PAL) do que devia ter para corresponder à versão cinematográfica, com 102 minutos. A piorar, facilmente se constata que esta não é uma versão cortada para obter classificação mais baixa, como sucedeu com «Crash» (também editado pela Lusomundo), até porque o 'R' americano (maiores de 17, se não acompanhados pelos responsáveis legais), não é uma classificação problemática para o mercado. A cópia com que deparamos é, nada mais nada menos, que uma versão preparada para exibição televisiva nas cadeias americanas (vd. O caso «A Última Sedução»), com remoção de toda a nudez, violência e alteração ou corte de linguagem "ofensiva". Não interessa entrar em detalhes, e, infelizmente, não há como comparar, mas o texto para que se remete anteriormente pode dar muitos detalhes do género de alterações a que essas cópias são sujeitas. Pelo que se constata na cassete, mesmo sequências em que Ashley Judd joga à roleta russa são cortadas, ao fotograma, para não mostrar a arma encostada à cabeça, algo que se repete noutra cena, em que sabemos como o personagem morre apenas por vermos a mancha de sangue no chão, junto à cabeça.

Também não interessa entrar nas justificações para esta prática, made in USA. Mas, numa situação normal, antes do filme se iniciar, surge uma mensagem que diz "edited for television" (montado para televisão), e, por vezes, será mesmo acrescentado algo que sugere que o filme está, desse modo, apto para um visionamento familiar. A cassete da Lusomundo, claro, não diz nada. Logo, engana o consumidor, porque o que está ali não é o filme «Normal Life», de John McNaughton, com um determinado conjunto de características. O que está ali é uma montagem, para as famílias americanas se juntarem em volta da TV, sem receio de se ofenderem por pele descoberta ou pela palavra começada por F.

James Berardinelli, americano, critica o filme na sua página, em http://movie-reviews.colossus.net/movies/n/normal_life.html. No seu texto, tal como no do crítico Roger Ebert (que pode ser acedido na página Cinemania, em http://cinemania.msn.com/), ou na página do Chigago Sun Times (link directo à crítica: http://www.suntimes.com/ebert/ebert_reviews/1996/10/102505.html), faz-se referência à incapacidade de Pam atingir o orgasmo, algo que se altera quando começa a assaltar bancos. Nesta cópia, claro, não subsiste sequer a palavra "orgasmo" ou a ideia de sexo. Apenas várias sequências em que o casal se aproxima, se oscula e - -

Questionou-se Berardinelli sobre o que faltará nesta cópia, em termos gerais. "Parece que terá perdido uns 15 minutos" - disse - "A versão original contém muita nudez, e imensas cenas de sexo, muito explícitas, entre Luke Perry e Ashley Judd. Também existe alguma violência explícita. Cortar tudo isso, anula todo o impacto do filme." Acrescentou ainda que versões "editadas para TV", nunca são lançadas em vídeo, nem tal faz sentido, uma vez que se está a pagar directamente para aceder ao filme.

Aquando da edição de «Crash» a Lusomundo terá dito ao Expresso que se tinha tratado de um erro, pedindo desculpas. As relações públicas, via e-mail, disseram algo mais surreal: era a cópia que estava disponível, e para a venda directa editariam a "mais longa" que existisse nessa altura. No caso de «Crash», a Lusomundo conseguiu obter a única cópia censurada do filme, feita de propósito, com a classificação 'R' para a cadeia Blockbuster Video, que se recusa a distribuir filmes classificados 'NC-17' (maiores de 17, sem excepções). Com a edição de «Normal Life», tornada apta para visionamento familiar, o nível de censura é mais grave, e as possibilidades de se tratar de mero desleixo tornam-se cada vez mais difíceis de aceitar, já que estas cópias nem sequer são editadas em vídeo nos EUA. A capa da cassete, aliás, contém a imagem frontal do suicídio acima referido, que não se vê no filme.

Qualquer que seja a razão, evitamos pensar que alguém, intencionalmente e com plena consciência, decida importar censura. Qualquer que seja a razão, registam-se dois casos em que a Lusomundo engana os consumidores, e disponibiliza filmes censurados no mercado. Podemos perguntar-nos quantos filmes estarão por detectar, e se vale a pena comprar qualquer filme com uma marca associada a uma editora que desconsidera de tal forma os consumidores. Noutro país, seria provável que os responsáveis removessem os produtos do mercado ou lhes acrescentassem rotulagem apropriada.

A arma não contém munição real.
Se a primeira imagem se intui, mostrando-se o "antes" e o "depois", esta integra-se numa sequência que não aparece de todo. O motivo será simples: é uma sequência com nudez.

24/11/97

Página da Lusomundo na Internet: http://www.Lusomundo.pt
E-mail: Lusomundo.pt@mail.telepac.pt


Outros artigos sobre censura em Portugal:
SIC, Censura e «A Última Sedução»
«Crash» Censurado

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