SIC, Censura e «A Última Sedução»

Material comparado:
* Cassete de venda directa da Filmes Castello Lopes adquirida na promoção da Repsol. Tempo na capa: aprox. 92 min. Tempo no vídeo: mais de 105. Este tempo corresponde, descontada a aceleração PAL (menos 1/25) aos 110 minutos da versão integral.

* Cópia emitida pela SIC. Tempo aproximado: 90 minutos. O cálculo não é muito preciso. Descontam-se intervalos e adicionam-se três minutos dos créditos finais que a SIC substituiu por publicidade, na já tradicional "censura" da casa.

Para onde foram os 15 minutos...?

Linguagem
As palavras feias consideradas ofensivas, i.e., "fuck" e suas variantes, estão substituídas, abafadas, ou pura e simplesmente cortadas. As palavras alteradas ou removidas serão dezenas, como facilmente se aperceberá quem assista à cópia não censurada. Alguns "shit" passaram, mas outros foram substituídos por "damn". Mesmo "bitch" é por vezes truncado para "witch". "Fuck off" passa a "get lost", "where the fuck am I?", passa a "where the hell am I?", "ass" torna-se "butt" ou mesmo "tail". Não me consigo lembrar para o que foi alterada uma ameaça de arrancar olhos e usar os orifícios para práticas sexuais, e também não vale a pena ir agora procurar. "Designated fuck" é "designated lover". E Bridget (Fiorentino) assume-se como "a complete fucking bitch", mas na SIC diz "I'm your worst nightmare". No bar, na terreola (Beston, para onde ela foge), quando não a servem, diz "a quem tenho de mamar para ser servida?". A censura muda para "o que é que uma rapariga tem de fazer para ser servida?".

Na linguagem é impossível ser exaustivo. A extensão das alterações é demasiado desmotivante. Em relação ao personagem de Linda Fiorentino, a caracterização é radicalmente alterada.

Cortes
1. No bar, quando Bridget (Fiorentino) analisa o interior da braguilha de Mike (Pete Berg), a imagem é substituída por um plano do peito para cima (de outro ângulo). O original não tem nada de "explícito". Vê-se a mão de um lado para o outro dentro das calças dele.

2. Uma cena em que Bridget compra um jornal, lê-o e procura emprego; passam pessoas que lhe dão os bons-dias e crianças sorridentes. Ela olha com desprezo para tudo. A sequência foi toda removida e passa directamente para a contratação.

3. Primeira cena de sexo (todas as cenas de sexo são com Berg/Mike e Fiorentino/Bridget). À porta do bar com os actores encostados a uma rede. Param quando alguém sai, para não fazerem barulho, e continuam depois. A cena é, pois, mais ou menos longa. Tudo removido. Na cópia censurada surgem apenas a ajeitar as roupas, no fim.

4. Segunda cena de sexo. Logo a seguir, dentro do jeep. Ele deitado, com ela por cima. A câmara move-se a partir dos pés dele, passando pela zona pélvica e terminando no rosto. Pelo meio há gemidos. Corta quando chega à zona "marota" (um corte muito óbvio), de forma a remover o movimento e os gemidos. O diálogo é comprimido para se ajustar a isto (e começa mais cedo no plano), e no fim ele pergunta se ela não será uma grande "bitch/witch" ao que ela responde como referido acima ("fucking bitch" para "worst nightmare"). O cabelo à frente da boca dá muito jeito aos censores.

5. Bridget sai da cama, mas, como se vêem os seios, a sequência está totalmente tesourada e com planos substituídos; uma confusão visual. Segue-se outra frase ilustrativa do seu "carácter". Ele quer algo mais (conversar, saber mais dela) e ela diz algo como "fucking doesn't need to be more than fucking". O plano com o diálogo foi também totalmente removido.

6. Bridget está na cama. A câmara percorre-a desde os pés, passando pelo corpo nu (apenas lateralmente, não se mostrando nenhuma parte íntima), até parar no outro extremo, onde a vemos a ler o jornal, para procurar casa para arrendar. Corta-se tudo e vemos apenas o jornal a ser assinalado, num plano (agora) estático.

7. Uma cena em que Clay (Bill Pullman) é interrompido na conversa com o detective, por alguém que bate à porta e compra uma receita de drogas. Toda cortada. Com o corte vai-se diálogo com o detective, decorrido sobre o bater à porta, as reacções, etc.

8. Terceira cena de sexo. Uma cena mais tradicional, razoavelmente longa, com travellings sobre os actores, mostrando algumas partes dos corpos nus. Na SIC a cena é mais curta e constituída por uma montagem inconsistente, saltando quando a imagem se aproxima das parte ofensivas. Usam-se mesmo planos repetidos, em substituição dos que se cortam.

9. Outro corte extenso, mesmo depois de Mike explicar a Bridget porque se casou por dois dias, e de ela perguntar se foi algo que lhe passou pela cabeça "between fucking" (subtituido por "between things"(!), mas, curiosamente, das duas vezes é traduzido por "entre duas quecas?"). Pete está sentado na cama e levanta-se, nu, para ir para a casa de banho. Vê-se o traseiro, mas o pior deve ter sido a "sombra" que se vê a abanar. Ela segue-o e entra no chuveiro. Há uma troca de palavras em que ele diz como ela é importante para ele, como lhe alterou a sua vida, ali no meio da terreola, etc. É uma sequência importante, em termos de diálogo, mas foi tudo cortado. Só se vê Mike sentado e corta-se para a cena que se segue.

10. O detective privado apanha Bridget no jeep, e obriga-a a conduzir sob a ameaça de um revólver. Há muito diálogo, cheio de "fucks", simplesmente apagados (demasiado notório). A sequência extensa incluía um estratagema em que Bridget dizia ter o dinheiro num banco, e que era possível ouvir o saldo por um número de telefone, contando que ele se esquecesse da chave na ignição ao sair do veículo. Param numa cabine, depois seguem, no meio de mais diálogo extremamente forte (censurado) em que ela o convence a mostrar o pénis, dizendo que nunca tinha visto o de um negro. Depois é o acidente. Corta-se a maior parte da cena, até ao acidente. Agora não há quase diálogo, nem qualquer estratagema por parte dela, e o carro nem sequer pára. Mal entram no jeep, ela começa a provocá-lo, até se dar o acidente, quase de imediato.

11. Bridget descreve a agressão ao polícia, no hospital. Diz que ele terá começado a dizer "motherfucker this, motherfucker that". Aqui ela sussurra, como se estivesse algo comprometida com a palavra. Na censura fica "mother this, mother that". Mas aqui o texto deixa de ser sussurrado. Consistente, não? O som altera-se, de súbito, como se alguém mexesse na equalização.

Mike vai buscá-la e ela sai à frente. Na cena seguinte ele leva-a a casa, e dialogam. Ele pede desculpas por tê-la deixado sozinha, implora, etc., e ela ignora-o. Cena cortada. Na SIC não há o diálogo e parece que ela foi sozinha para casa.

12. Para o final do filme, na casa de Clay, há uma sequência longa de diálogo entre este e Mike. As explicações de como ela terá enganado Mike, apresentadas por Clay, são detalhadas. Mas a cena é toda cortada. Tudo, incluindo uma referência importante às etiquetas do prédio (com o nome falso "Cahill"), culminando com o sinal que ela estaria à espera. Na SIC, ele diz só "ela é a minha mulher..." e as luzes apagam-se. Não se percebe quase nada.

13. Na manipulação final, em que Bridget convence Mike a violá-la ("fuck me" é trocado por "rape me") - para disfarçar os acontecimentos anteriores -, há mais uma sequência com diversos pequenos cortes. Extrai-se da cena movimentos pélvicos, a visão fugaz do traseiro da actriz e os slips a serem rasgados. Fica mais uma colagem ridícula de imagens. Vê-se mais a senhora do 115 (911) do outro lado da linha, a falar, do que o acto em si, que esta escuta.


A cópia apresenta todas as características de se destinar à exibição em cadeias de TV americanas. Estas cópias são normalmente vendidas para o exterior? Assim sendo seria possível o comprador desconhecer a natureza da cópia? Será que "simples" desleixo pode justificar isto? Ou puseram-lhes à frente a opção de uma cópia com 90 minutos e outra com 105?

Haverá alguma ironia num filme classificado R (maiores de 17), censurado para ser visto para todos, ser apresentado num programa de um canal assumidamente malandro, numa rubrica de cinema precisamente chamada "Maiores de 17"? A havê-la, o ridículo sobrepõe-se-lhe. Talvez tudo não passe de mero desleixo por parte de um canal que não passa filmes completos há imenso tempo. Ou, talvez, preferir cópias censuradas possa ser um novo degrau na evolução da emissora.

Mostra lá o mister Ed...
A cruel, insensível e manipuladora Bridget Gregory analisa o conteúdo das calças de Mike, um pobre rapaz do campo, e descobre que, afinal, é a SIC que não tem tomates.

«A Última Sedução» © 1994 October Films

3/10/97


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