Sitges 2002 – 35º Festival Internacional de Cinema de Catalunya

Cartaz Sitges 2002 I – Introdução
  • Projecção
  • Público
  • Legendagem
  • Bilhetes
  • Salas

    II – Filmes

  • Fantàstic
  • Gran Angular
  • Anima't
  • Orient Express

    III – Palmarés

  • Links rápidos:
    Agitator, Asesino en Serie, Bangkok Haunted, Cypher, Dark Water, The Discovery of Heaven,
    Dolls, The Eye, H Story, Ichi the Killer, Laputa, Legend of Zu, My Beautiful Girl Mari, Nausicaä, No Blood No Tears,
    Patlabor III, Public Enemy, Réquiem, Russian Ark, Sympathy for Mr. Vengeance, A Tree of Palme, Volcano High

    I – Introdução

    A 35ª edição do Festival de Sitges, tradicionalmente dedicado ao cinema fantástico, realizou-se de 3 a 13 de Outubro de 2002, naquela vila da Catalunha, no sul de Espanha, a cerca de 30km de Barcelona e à beira do Mediterrâneo. Nascido como Semana Internacional de Cine Fantástico y de Terror, em 1968, Sitges é uma referência incontornável a nível internacional, constituindo um dos mais importantes festivais temáticos do planeta. A sua importância reflecte-se no número de representantes de media acreditados, que terá passado dos 750 (dos quais, aparentemente, apenas um de Portugal.)

    A edição de 2002 agrupou 250 longas metragens e 350 curtas, por 8 categorias e 3 retrospectivas (Fantípodes, Eurowestern e La Nova Carn), a que acresceram algumas sessões especiais. No rico programa de cinema de animação efectuaram-se homenagens-retrospectivas a Miyazaki Hayao e a Chuck Jones.

    Infelizmente, a primeira presença Cine Die no Festival de Sitges teve de ser limitada à primeira semana, de modo que este texto denota forçosamente algumas limitações. Apesar do programa possibilitar alguma flexibilidade no que toca às escolhas de filmes a visionar – com repetições dos mesmos filmes no próprio dia ou no dia seguinte – algumas condicionantes, como a distância (de uns 15 minutos) entre o coração do festival, o Auditori do Hotel Melià Gran Sitges, e as outras duas salas (muito próximas uma da outra), e o interesse particular pela secção Orient Express, que me afastou diversas vezes do programação da secção principal, levaram a que perdesse alguns filmes importantes e que não tivesse tido oportunidade de assistir a outras actividades paralelas. Os filmes são mais importantes, não é verdade?

    As Salas do Festival

    Auditori de l' Hotel Melià Gran Sitges
    A sala principal do festival, e seu quartel-general, foi construída em 1992, tem uma forma interior hexagonal e é constituída por uma impressionante plateia com 1384 confortáveis lugares, direccionados para o seu ecrã gigante, sendo uma das maiores salas de Espanha. Tem um moderno sistema de projecção, que permite todos os formatos de 35mm, bem como projecção em 70 mm, com reprodução sonora digital Dolby, DTS e SDDS.

    Auditori
    O Auditori, à esquerda do hotel.

    El Retiro
    Esta sala constituiu a primeira base do Festival de Sitges. Tem 600 lugares, divididos entre plateia e balcão, havendo sofrido algumas renovações nos últimos 2 anos, incluindo a colocação de novas cadeiras e um novo projector de 35mm. Reproduz som digital Dolby e DTS. Inserida no espaço associativo da Societat Recreativa El Retiro, que inclui sala de jogos, bar e um espaço para exposições, nos seus jardins interiores inclui um outro bar e um ecrã para projecções ao ar livre, frente a uma plateia que pode ser constituída por mesas e cadeiras ou arrumada convencionalmente para sessões mais concorridas, onde se realizou a secção Anima't a la Fresca (ou Animação ao Ar Livre).

    Casino Prado
    A sala “menos boa” do festival situa-se no edifício do Casino Prado Suburense, ao lado de um bar. Tem alguns problemas de insonorização... Ou melhor, não tem insonorização, de modo que em momentos silenciosos podemos ouvir os cafezinhos a assentarem nas chávenas ou um copo a ser partido, ao nosso lado direito, ou uma moto a passar na rua, ao nosso lado esquerdo. A projecção apresentou alguns problemas de focagem, denotando um problema que mancha também algumas das salas lusitanas e que consiste na impossibilidade de focar toda a extensão da imagem, i.e., uma focagem perfeita do lado esquerdo da imagem resulta numa focagem má ou, pelo menos, menos perfeita, no lado direito e vice-versa. Este problema foi mais notório na projecção de «Laputa» [vd. texto]. Apesar da idade avançada, a sala tem 450 lugares relativamente confortáveis, distribuídos num formato tradicional de plateia e balcão, e projecta todos os formatos de 35mm com som Dolby e DTS. Quanto ao som, nada de negativo a apontar, pois todas as salas revelaram boas prestações a nível de som digital multicanal, com separações de canais traseiros muito bem definidas em determinados filmes.

    Espaços complementares

    Anima't a la Fresca
    No jardim nas traseiras do Teatro El Retiro, é um espaço ao ar livre muito agradável, com um ecrã com 6 x 4 metros e som stereo, usado como complemento à selecção do programa de animação (Anima't), exibindo títulos de temática mais familiar.

    Brigadoon
    Dois espaços para projecção vídeo, com 100 lugares cada, destinados a exibições complementares às sessões oficiais, com pendor para títulos alternativos, de culto, de fantasia e de animação.

    Mercat Vell
    Um mercado até ao início dos anos noventa, o "Mercado Velho" é agora um espaço multicultural, oferecendo uma programação diversificada durante todo o ano. Usado em anos anteriores do festival somente para exposições, foi agora local de projecções complementares e reforço da secção Brigadoon.Tem 250 lugares.

    Projecção

    As condições de projecção, nas três salas do festival, foram consideravelmente boas, com a imagem quase sempre bem focada, excepto em alguns casos pontuais. Apenas a projecção de «Tenshi no Shiro Laputa» (no Casino Prado) revelou alguns problemas mais aborrecidos, quando a imagem parecia resistir à focagem, tendo-se revelado impossível focar simultaneamente as duas metades da imagem, o que pode sugerir problemas sérios na projecção. Em termos matemáticos é como se o projector não se encontrasse numa perpendicular perfeita com o ecrã ou vice-versa, mas este problema não se mostrou tão vincado em outras sessões. A sessão em causa não correu nada bem, pois as legendas electrónicas em castelhano também estiveram desacertadas por momentos, chegando inclusive a desaparecer por algum tempo. Infelizmente, tratava-se do único filme asiático sem legendagem em inglês impressa na película. Durante parte da projecção de «No Blood No Tears» notou-se uma estranha interferência no som, como se uma transmissão de TV ou rádio estivesse a entrar nas colunas. Parecia ser do filme, mas as cenas mudavam e o som de fundo persistia. Não durou muito tempo, felizmente. Houve também alguns problemas com o som de «Réquiem», mas deveu-se muito provavelmente à trovoada que interrompeu a sessão por diversas vezes, cortando a corrente eléctrica. As melhores projecções do Auditori revelaram uma imagem extraordinariamente bem definida, mostrando pormenores raramente vislumbrados, como poros do rosto de actores, quase parecendo 70mm. As boas condições de exibição estendem-se à reprodução sonora, pois apesar das duas outras salas não serem de construção recente, os seus sistemas sonoros estão actualizados e o som digital multicanal fez-se sentir com clareza, sempre que o filme em causa o exigia.

    Existiram alguns atrasos, o que é impossível de evitar num evento destas dimensões, mas a máquina organizativa revelou-se muito bem oleada. Registou-se uma gaffe curiosa, quando apareceu um senhor a falar em francês na introdução de «Patlabor III», colocando os membros da audiência a olharem uns para os outros com um ar de profunda interrogação, tentando perceber quem é que se tinha enganado na sala, se nós, se eles.

    Público

    O público do festival é bem comportado, mas não em demasia. Algumas sessões foram bastante silenciosas, outras nem por isso. A sala e o filme têm influência. Por exemplo, o imponente Auditori impõe respeito e, como tal, não se vê, no final de uma projecção, o chão cheio de jornais abandonados e outros tipos de lixo, como foi frequente nas outras duas salas, onde, de vez em quando, alguém também se lembrava de derrubar uma garrafa de plástico ou uma lata de refrigerante. Os clássicos cochichos estão tão presentes em Espanha como em Portugal tal como o não menos clássico acto de levar uma criancinha que mal anda para um filme legendado. Em suma: parecido, mas menos pronunciado.

    Legendagem

    A maioria dos filmes foi apresentada com legendas em inglês (excepto, obviamente, os falados em inglês). No caso dos filmes asiáticos, a norma foi a utilização de cópias com legendagem em inglês impressas na película – as que normalmente fazem o circuito dos festivais –, com legendas electrónicas em castelhano, sob o ecrã. A legendagem electrónica está presente nas três salas, com a diferença de que o maior ecrã do Auditori usa dois rectângulos, possibilitando duas legendagens diferentes ou a mesma repetida duas vezes (uma para o público de esquerda e outra para o público de direita). Algumas sessões no Auditori tiveram legendagem trilingue, acrescendo ao inglês da película, uma linha em castelhano e outra em catalão. A única projecção a que assisti sem inglês disponível foi a de «Laputa», uma vez que a cópia não tinha legendagem impressa e o Casino Prado só apresentou uma opção de legendagem electrónica (castelhano). Já «Russian Ark», falado em russo, foi apresentado no Auditori, igualmente sem legendas impressas, mas com legendas em inglês e castelhano sob o ecrã.

    Bilhetes

    Os bilhetes foram vendidos a um preço de €6 para as sessões competitivas principais (Fantàstic, Gran Angular, Orient Express, Anima't e Sessões Especiais). Bilhetes para as restantes sessões vendiam-se a €4.5 e para as maratonas (2 ou 3 filmes) a €9. Eram de entrada livre as projecções no Anima't a la Fresca, Mercat Vell, Brigadoon, bem como algumas apresentações e projecções especiais no Auditori do Hotel Melià Gran Sitges. Os bilhetes eram vendidos em pré-fabricados situados junto ao Auditori e entre o Casino Prado e El Retiro, da responsabilidade da Tel-Entrada, propriedade da Caixa Catalunya, um dos patrocinadores do festival. Um dos pontos negativos do sistema era que estes pontos de venda apenas vendiam bilhetes para o próprio dia; com antecedência só via telefone ou online (www.telentrada.com), o que constitui uma desvantagem para viajantes sem acesso a um computador.

    Posters
    Os posters em frente ao Auditori assinalavam a presença da Filmax no festival.
    Usei o serviço online para garantir bilhetes para as primeiras sessões e tive problemas com dois browsers diferentes, um deles (IE) crashando antes de concluir a compra. Ou pensava eu ter sido assim, pois só no momento de assistir ao filme é que constatei que o envelopezinho tinha entradas duplicadas. A Tel-Entrada resolveu o assunto sem grandes complicações, após contacto por e-mail, creditando-me o dinheiro de volta, depois de, no local, um jovem de serviço com algumas dificuldades de comunicação plurilingue se ter recusado a aceitar as entradas duplicadas de volta e a devolver o dinheiro correspondente. As compras por telefone são morosas – têm de ser feitas filme a filme, muito devagarinho – e podem-se tornar dispendiosas usando um telefone celular em roaming. Há que acautelar bilhetes para sessões nocturnas, ao fim de semana, ou para filmes mais procurados a qualquer hora do dia, pois várias sessões encontravam-se esgotadas no dia anterior. A falta de flexibilidade linguística de algumas pessoas ao balcão da Tel-Entrada – bem, talvez apenas de um certo jovem – também não ajudou em algumas situações mais problemáticas (é estranho perceber 100% do que alguém diz em castelhano, mas o interlocutor ficar confuso e não entender nada só porque no meio de uma frase lhe aparece uma palavra sem correspondência no seu banco de dados).

    Sugestão: antes de viajar, comprar os bilhetes para as sessões que tem a certeza não querer perder, levar um portátil com telefone móvel ou escolher um hotel que permita a ligação (considerar as possibilidades de contas chorudas) ou pedir a alguém que compre os bilhetes online por si. Também pode arriscar um cyber-café, se não se importa de deixar o registo do seu número de cartão de crédito em computadores de terceiros.

    II – Filmes
    Fantàstic

    Passando ao substrato propriamente dito, a selecção principal do Festival de Sitges (Fantàstic) foi inaugurada com «Darkness» de Jaume Balagueró («Los Sin Nombre», 1999), uma produção espanhola da Fantastic Factory (grupo Filmax), com um elenco internacional e falada em inglês, que certamente iremos também ter a oportunidade de ver no próximo Fantasporto e que, entretanto, estreou comercialmente em Espanha, a 11 de Outubro.

    Asesino en Serio
    Poster de «Asesino en Serio».
    «Asesino en Serio» é uma co-produção hispano-mexicana, que constitui a primeira longa-metragem de Antonio Urrutia, nomeado para um Oscar para a melhor curta-metragem, com o filme «De Tripas Corazón». O realizador esteve presente na sessão em que o filme foi projectado, mas a verdadeira estrela foi Santiago Segura – que interpreta o padre Gorkisolo no filme –, o autor e intérprete dos dois «Torrente», cujo segundo tomo, «Torrente 2: Misión en Marbella» (2001), calcinou as produções de Hollywood nas bilheteiras espanholas. Segura é também um excelente improvisador, entretendo a audiência por uns 10 ou 15 minutos enquanto o actor Jesús Ochoa supostamente estaria bêbado no bar e se fazia esperar (não chegou a aparecer). Segura referiu-se nostalgicamente à importância da vila de Sitges na sua carreira, dizendo que “antes era o mundo, mas agora é uma aldeiazeca”. Segundo ele, não foi Sitges que mudou, mas foi ele que cresceu e que, inclusivamente, o palco onde se encontrava era demasiado pequeno para uma estrela do seu porte (apesar de ter perdido uns 20 quilos depois de «Torrente 2»). De Ochoa, que tem uma alcunha como Chocho, ou algo parecido – “mais parece nome de cão” – disse que era muito bom actor, apesar de não ser grande coisa como pessoa. Sobre o filme, referiu-se-lhe dizendo não se tratar de uma comédia ligeira, mas sim de “uma comédia séria”, com muitas modelos mortas, o que é uma vantagem, já que assim não têm que falar. Segura, que regularmente parava para posar para uma foto, ainda explicou porque é que as mulheres mais bonitas são más na cama, o que já começa a fugir ao tópico deste texto. Mas, enfim, disse ele, personificando uma dessas modelos, inerte no leito, qualquer coisa como “eh, olha para mim... que mais queres?

    Quanto ao filme, bem, esgota-se um bocado na sua premissa. Um detective investiga a morte de várias mulheres esbeltas, cujos corpos são encontrados de traseiro arrebitado e com um sorriso de orelha a orelha (o cartaz, reproduzido aqui ao lado, é muito honesto). O médico-legista não tem dúvidas: a causa de morte foi um “mega-orgasmo”. Há algum humor bem sucedido, mas é insuficiente para hora e meia de filme. Um problema de ritmo, prejudicado por outra linha narrativa menos kitsch, relacionada com os problemas sentimentais do detective Martinez. Acaba por ser um filme agradável de ver, pelo humor, pela falta de complexos morais e por não se levar muito a sério. Além de que inverte o tradicional perfil do assassino em série que quer causar dor e morte; este quer apenas causar prazer (a morte é um efeito secundário algo infortunado).

    Gin Gway/The Eye
    Duas mulheres ameaçadas pelo sobrenatural: Angelica Lee em «Gin Gway/The Eye» (em cima) e Kuroki Hitomi em «Dark Water» (em baixo)
    Dark Water
    O cinema fantástico veio de três continentes diferentes, e o horror asiático deu um contributo de relevo para esta selecção, com um par de títulos de notório valor: «Gin Gway/The Eye», uma co-produção Hong Kong/Tailândia e «Honorugai Mizo no Soko Kara» [Dark Water], do japonês Nakata Hideo, realizador do célebre «Ring» (1997). «The Eye», realizado pelos gémeos Pang (Fat/Danny e Shun/Oxide) relata a história de uma jovem de Hong Kong, cega desde os dois anos e que é sujeita a um transplante de córnea, que lhe permite recuperar a vista. Tal acontece gradualmente, mas desde o primeiro momento que ela começa a ver algo para lá do mundo físico. Primeiro sombras, depois figuras. O horror é criado eficazmente tanto pela sugestão como por métodos mais explícitos e convencionais, e, apesar de estarmos no meio de ingredientes familiares em filmes do género, os irmãos Pang conseguem elevar o material e produzir um bom filme de horror, que não necessita de recorrer a choques gratuitos e não procura quaisquer espécie de compromissos durante o desenvolvimento narrativo ou sequer na inesperada conclusão. Prémio para a melhor fotografia.

    «Dark Water» não desiludirá os fãs do brilhante «Ringu» (Melhor Filme no Sitges de 99, valendo também o prémio de Melhor Realização a Nakata), mas o seu tom é algo diferente, apesar de prosseguir na destilação de um horror atmosférico que se desenrola lentamente através da percepção gradual de um cenário sobrenatural e não pela soma de pequenos momentos, a caminho de uma clarificação e resolução de um problema (aplicável à generalidade de filmes de psicopatas assassino e monstros). Yoshimi é uma mulher recém-divorciada que tem de lutar pela custódia da filha de 5 anos, com a qual se muda para um apartamento com sérios problemas de humidade. Cedo se constata que o maior problema do local não é o gotejar que cai do tecto... Referido como uma ”rotineira história de fantasmas” por um crítico do El País, «Dark Water» está longe de ser um filme de horror estandardizado, desde logo porque assenta sobre um drama familiar muito real, que facilmente envolve o espectador. Temos aqui um misto de amargura, trazido pela componente dramática, mesclado com o horror, à medida que Yoshimi e a filha vão tendo contactos mais próximos com o fantasma de uma menina, de forma a que o final se vai revelar particularmente penoso, algo invulgar num filme de género que quando nos assusta ou perturba já não é nada mau. Que dizer quando, para além disso, ainda nos provoca tristeza pelo possível destino de algumas personagens? No mínimo que as personagens e as situações são credíveis, apesar de estarmos no campo do cinema fantástico, onde o drama é de mais difícil exequibilidade. Na minha opinião, estamos perante uma obra máxima do cinema de horror moderno, mas provavelmente condenada a passar relativamente despercebida pelo nosso hemisfério. Galardoado com uma menção especial do júri.

    Passaram pela Fantàstic de Sitges dois filmes que entretanto já tivemos a oportunidade de ver em Portugal, «Reign of Fire», de Rob Bowman e «Spider», de David Cronenberg, o qual esteve presente na vila catalã, saindo do festival agraciado com a distinção La Màquina del Temps, juntamente com o mexicano Guillermo del Toro. Foram projectados outros títulos do realizador canadiano, inseridos na retrospectiva La Nova Carn: «Stereo», «Crimes of the Future» e «Videodrome».

    Russian Ark
    «Russian Ark»: uma visita guiada pela história da Rússia e pelo museu Hermitage.
    Um título a gerar muita expectativa foi «Russkij Kovcheg» [Russian Ark], de Aleksander Sokurov, cujo filme mais conhecido deverá ser «Mãe e Filho/Mat y Sin» (1997, estreado em Portugal no ano seguinte), porquanto se trata de uma obra a que subjaz um processo cinematográfico no mínimo original: o de construir todo o filme sobre um único plano de mais de 90 minutos (o filme dura 95, desconte-se 2 ou 3 para os créditos). Não há dúvida de que se trata de uma obra invulgar e de grande beleza visual – apesar de ser vídeo digital, a única forma de filmar um plano contínuo com esta extensão, apresenta uma definição de imagem surpreendente – mas o conteúdo narrativo é necessariamente pouco susceptível de gerar paixões. É difícil de conceber que pudesse ser de doutra forma, pois este procedimento dificulta seriamente o desenvolvimento de uma história de ficção, com princípio, meio e fim. O filme acompanha a viagem de dois indivíduos – o narrador, do nosso tempo (a voz do próprio Sokurov), que é o ponto de vista da câmara e o qual nunca vemos, e um estrangeiro, um marquês francês do Século XIX –, que se encontram a deambular pelas divisões do infindável Museu Hermitage, em São Petersburgo, e interagem com uma série de quadros históricos, com um clímax num baile com cerca de 600 figurantes, que durará uns 10 ou 15 minutos, com a câmara a movimentar-se pelo meio dos convivas. Cada frame do filme (do vídeo?) transpira luxo e um orçamento confortável, sobretudo a nível de trajes de época, tendo em conta a quantidade de figurantes que tiveram de ser vestidos. Um objecto fascinante, sem dúvida, mas com momentos que acabam por constituir – literalmente –, uma caminhada lenta, numa longa fila, até que chegue a nossa vez de atravessar uma porta.

    Cypher
    Lucy Liu em «Cypher», de Vicenzo Natali.
    «Cypher», de Vicenzo Natali, o realizador de «Cube» (1997), que venceu Sitges em 98 e o Fantasporto em 99, foi introduzido pelo seu realizador, numa projecção que marcou a estreia mundial deste techno-thriller de ficção científica. Natali leu um texto em catalão para grande divertimento e algum gozo por parte da audiência (não entendi de que riam; pareceu-me perfeito). “Cypher” refere-se ao elemento do vazio de personalidade que subjaz ao filme, onde a lavagem cerebral é um método empregado para criar espiões industriais. Mas esse mecanismo não passa de um McGuffin para apresentar uma sequência infindável de surpresas de tamanhos diversos, com um grande esforço do argumento para enganar o espectador com encadeamentos de situações que afinal não são o que pareciam ser depois de se ter revelado que não eram outra coisa. Ou algo assim. Há por aqui um pouco de «Total Recall» (1990) e de muitos outros filmes de ficção científica que lidam com identidades criadas artificialmente e que se centram em personagens em busca do seu verdadeiro eu. Com a remoção de metade das surpresas, talvez se pudesse ter conseguido um filme de acção sem preconceitos. Acabámos por ficar com um filme que redigere o almoço de ontem, ao mesmo tempo que tem a pretensão de se passar por muito espertinho. Mas “surpresas” atrás de “surpresas” não chegam para fazer um bom thriller. Apresentado em Sitges em première mundial, «Cypher» valeu o prémio de melhor actor a Jeremy Northam.

    Requiem
    «Requiem»: rituais pouco católicos coicindiram com o início da tempestade que inundou Sitges. Em baixo: Masskri (esquerda), repete a pose de crucificado, enquanto Renoh sai de cena.
    Hervé Renoh e Moussa Maaskri
    Foto: P. Oliveira
    «The Discovery of Heaven» foi introduzido como um "thriller teleológico" e apresentado pelo actor e realizador Jeroen Krabbé. Esta co-produção Holanda/Reino Unido acompanha as manipulações políticas dos anjos que, no Céu, trabalham em nome de Deus, que, desiludido com a humanidade, decidiu que era tempo de recuperar as placas com os dez mandamentos. Para tal, o anjo destacado para o serviço tem de criar determinadas condições para que os humanos, protagonistas da história, sigam o caminho adequado, tendo de lidar com a margem de erro do livre arbítrio. Para que nasça o humano que irá desempenhar a tarefa, há que juntar um trio amoroso, de dois homens e uma mulher (para estes nasceram já havia sido necessário engendrar duas guerras mundiais, entre outros acontecimentos catastróficos.) Uma narrativa relativamente sólida, retirada de um best-seller holandês de 900 páginas, mas que sugere demasiada capacidade de síntese para o final, que também inclui alguns efeitos visuais pobres, tendo em conta o orçamento elevado do filme, no seio das produções europeias (15 milhões de dólares). De acordo com Krabbé, para rodar um segmento do filme em Jerusalém, em território administrado pela Autoridade Palestiniana, a produção convenceu os responsáveis locais de que estavam a fazer um documentário sobre arquitectura muçulmana.

    «Requiem» é um filme francês, rodado em vídeo digital, a concorrer ao prémio Mèlies, e a primeira longa-metragem do cineasta Hervé Renoh. Renoh e o actor Moussa Maaskri estiveram por breves instantes na sessão quase deserta (certamente terão tido mais audiência na projecção do dia anterior, no Auditori). O realizador limitou-se a fazer as apresentações e a dizer que Maaskri (o chefe dos vilões no filme) iria em seguida matar alguns membros da audiência. Pelo menos foi o que me contaram, pois quando entrei na sala só assisti à parte em que eles se retiravam ruidosamente. O filme: o narrador explica-nos como morreu e voltou a nascer, tendo recebido uma segunda oportunidade. Há 13 anos, participou num assalto que envolveu o sequestro de uma família, mas as coisas correram mal e o resultado final foi uma matança. Agora todo o grupo está na prisão, com excepção dele – o delator –, entregue à fé e refugiado num mosteiro. Alguém orquestra a fuga dos criminosos, que se irão juntar no mosteiro, onde entretanto foi também parar uma jovem campista perdida na tempestade. A maioria dos irmãos, muito convenientemente, saiu para participar numa reunião religiosa. Algumas coincidências, uma surpresa a mais no final (algo que nos ocorre logo, mas que pomos de parte por ser muito forçado, acaba por se confirmar) e reminiscências demasiado próximas de «Os Suspeitos do Costume» – com um indivíduo misterioso a mexer os cordéis nas sombras e uma voz off a repetir-se, acompanhando a revelação final sobre a identidade da mente criminosa, tal como no filme de Bryan Singer –, impedem-no se ser um filme equilibrado ou original.

    «Requiem» foi prejudicado pelo forte temporal que fustigou a Catalunha na noite de 8 de Outubro: a projecção foi interrompida 3 ou 4 vezes e a legendagem electrónica (em castelhano) não voltou, ficando “apenas” a impressa na película (em inglês). Por coincidência, também trovejava no filme quando a trovoada no exterior mandava abaixo a energia. Em poucos minutos, algumas ruas de Sitges tornaram-se incirculáveis, depois de fustigadas por uma precipitação média de 223,5 litros por m2, classificando-se no número dois do top Catalão, no que se refere aos níveis de pluviosidade gerados por este temporal. Supomos que a culpa não foi de filmes um pouquito heréticos como este ou «The Discovery of Heaven», para mais depois de termos visto «Russian Ark», também com uma imagem a remeter para Noé. O festival continuou. Infelizmente, não para mim.


    Gran Angular

    Na secção Gran Angular integraram-se obras diversificadas, em antestreia espanhola, como «800 Balas», o novo de Alex de la Iglésia, homenageando o western spaghetti, «The Guru», «xXx», «Narc», «The Salton Sea», «Hollywood Ending» de Woody Allen, ou a nova, brilhante e genial obra de Kitano Takeshi, «Dolls». A minha selecção colocou um pouco de lado esta secção, uma vez que a disponibilidade de tempo era limitada e os filmes de intuito mais comercial, com estreia provável nas salas portuguesas, são sempre menos apelativos no contexto de um festival de cinema.

    «Happy Now» é a primeira longa-metragem de Philippa Collie-Cousins, galardoada com um BAFTA por uma curta em 1997. Este filme, do ano passado, foi descrito pela realizadora, presente no Auditori – o qual abandonou, subtilmente, depois de um quarto de hora de filme –, como um “dark thriller” com um humor muito negro, reforçando a componente “sick” de alguns momentos e afirmando que, mesmo que não pareça adequado, “it's OK to laugh”. No fim acabou por não se revelar nada sick, antes pelo contrário, até algo light. Não é um novo «Shallow Grave» (1994), nem nada que se pareça, apesar de ter pás, florestas à noite e cadáveres enterrados. Há um trabalho competente por parte dos novos actores, também elogiados por Collie-Cousins, que lhes profetizou um futuro auspicioso, referindo a origem de grandes actores como Anthony Hopkins e Richard Burton no País de Gales, onde o filme foi rodado. A história centra-se numa morte acidental, na prisão do culpado errado e no regresso do “fantasma” da falecida mais de uma década depois, que leva os verdadeiros culpados a mais alguns actos criminosos. O humor negro revela-se um bocado despropositado, não colando muito bem com o texto, como se se tratasse de uma camada inserida a posteriori. Há umas personagens que parecem estranhas só para serem estranhas (a dona do hotel) e outro que tem uma intervenção algo ridícula (o satânico amador). Tudo parece fluir numa linha recta, sem grandes surpresas ou tensão dramática e sem que os potenciais enlaces românticos interessem particularmente o espectador.

    Dolls
    Kanno Miko e Nishijima Hidetoshi: duas das "bonecas" do último filme de Kitano.
    Um Kitano Takeshi sem 'Beat' Takeshi, o actor, depois de um dos seus filmes de gangsters mais violentos («Brother», 2000), traz-nos três histórias de amor extremas, recorrendo a uma linguagem visual muito aprimorarada e com diálogos esparsos: «Dolls», inspirado no teatro de marionetas bunraku, que introduz a narrativa, é provavelmente o melhor filme do realizador japonês e o filme do ano em potência. O amor romântico, que seria eterno se “os outros” não existissem, elevado a um estatuto de quase abstracção, platónico, quase irreal, impregna cada fotograma de «Dolls», transformando-o num poema melancólico e em uma (três) história(s) de amor tão bela(s) quanto trágica(s). Algumas personagens falham o “momento único”, tomando uma decisão errada, sendo impossível voltar atrás e corrigir os erros, por maior que seja o arrependimento (um tema caro a Wong Kar-wai, mas a linguagem aqui é outra). A primeira história é a de um casal que vagueia sem destino aparente, ligados por uma corda à cintura. A segunda, a de um yakuza em idade de reforma que decide procurar a mulher que abandonou 30 anos antes e que, na altura, lhe disse que continuaria todos os sábados a trazer-lhe o almoço ao mesmo banco de jardim. A terceira é a de um controlador de trânsito apaixonado por uma popstar que, ironicamente, sofre um acidente de viação, ficando com parte da cara desfigurada e que, nessa sequência, se decide isolar do mundo, recusando-se a ser vista pelos seus fãs (há aqui um paralelismo com o acidente sofrido pelo próprio Kitano em 1994, que lhe paralisou um dos lados do rosto). Remetendo mais desenvolvimento para um futuro comentário, acrescento que «Dolls» é um filme perfeito em todos os aspectos, desde os actores, à subtil direcção, ao lento ritmo narrativo, à música do colaborador de longa data, Hisaishi Jo, e à deslumbrante fotografia do também regular colaborador de Kitano, Yanagijima Katsumi.


    Anima't

    Sitges apresentou sete longas-metragens de animação, de vários quadrantes do planeta, com particular incidência nas produções asiáticas. Por ordem de apresentação: «Palumu no Ki» [A Tree of Palm] (Japão), «Mari Iyagi» [My Beautiful Girl Mari] (Coreia do Sul), «Mak Dao Goo Si» [My Life as McDull] (Hong Kong), «Kidou Keisatu Patlabor WXIII» [Patlabor Theatrical Version III] (Japão), «Eden» (Polónia), «Mercano el Marciano» (Argentina) e «Cowboy Bebop: Tengoku no Tobira» [Cowboy Bebop: Knocking on Heaven's Door] (Japão). «Sen to Chihiro no Kamikakushi» [Spirited Away], o último de Miyazaki foi integrado na secção principal Fantàstic. A retrospectiva da obra do animador japonês incluiu a projecção de «Kaze no Tani no Nausicaä» [Nausicaä of the Valley of the Wind] e «Tenshi no Shiro Laputa» [Laputa Castle in the Sky], no Casino Prado, integrados no programa principal, e outros de teor mais infanto-juvenil, como «Kurenai no Buta» [Porco Rosso] e «O Meu Vizinho Totoro/Tonari no Totoro», foram apresentados no espaço Anima't a la Fresca. A retrospectiva foi muito completa, incluindo episódios-piloto de séries realizadas por Miyazaki, como o incontornável "Conan, o Rapaz do Futuro/Mirai Shonen Conan", ou onde participou a nível de criação de layouts ou direcção artística, como "Heidi/Arupusu no Shoujo Haiji" ou "Marco – Dos Apeninos aos Andes/Haha o Tazunete Sanzen Ri". Um programa recheadíssimo; das longas metragens de Miyazaki só ficou de fora «Majo no Takkyubin» [Kiki's Delivery Service]. No Anima't a la Fresca a projecção foi de 35mm para os filmes (pelo menos para «Porco Rosso» e «Mononoke Hime», em versão original, sendo os episódios-piloto de séries de TV apresentados em vídeo, em alguns casos (a minoria, se não estou em erro) em versão espanhola.

    Laputa
    Laputa: Pazu assiste à descida dos céus de Sheeta.
    «Kaze no Tani no Nausicaä» (1984) é a segunda longa-metragem de Miyazaki Hayao, depois de «Castle of Cagliostro» (1979), afastando-se do tom de “acção slapstick” que caracteriza esse filme (ou a série “Conan”). Os paralelos com o mais recente «Mononoke Hime» (1997) são óbvios, com Ashitaka no papel de Nausicaä, a personagem que acredita que a humanidade pode viver em harmonia com a natureza, não hesitando em colocar-se de corpo e alma à frente de situações potencialmente letais. Num futuro distante, o planeta está desolado e os humanos vivem em comunidades pequenas, circundados por gases mortais, e ameaçados por insectos gigantescos, fruto de mutações. O Vale do Vento é um dos locais poupado pela morte e desolação e, como tal, é cobiçado por outros povos, os quais, na procura do domínio sobre os seus rivais não hesitam em reavivar um dos deuses guerreiros, responsável pela destruição da civilização. Opondo-se-lhes, surgem a princesa Nausicaä e Asbel, princípe de Pejitei, que tentam convencer os povos belicistas de que a natureza está a trabalhar na recuperação do meio ambiente e que eles estão prestes a estragar tudo. Este é uma das obras mais maduras do realizador japonês, pelos temas e pela sua complexidade narrativa. Não contém nada que possa chocar crianças pequenas, mas é mais adequado para um público adolescente e adulto. A animação é, como seria de esperar, de grande qualidade, e as personagens estão muito bem delineadas, movendo-se numa história com a capacidade de comover o espectador. Em meados dos anos 80, foi feita uma versão nos EUA com menos 25 minutos de duração, chamada «Warriors of the Wind», que esteve em parte na origem das cláusulas protectoras no contrato entre a Tokuma e a Disney, que impediram que a Miramax retalhasse «Mononoke Hime» para o tornar num “inofensivo” filme infantil.

    «Tenshi no Shiro Laputa» (1986) tem um registo mais ligeiro do que «Nausicaä», com alguma acção cartoonesca e “acting” mais histriónico por parte das personagens, característico de muita animé. Por detrás, mantêm-se as preocupações de Miyazaki com o equilíbrio da natureza e a sua ameaça por parte dos homens, mais interessados em riqueza e poder. Inspirado num dos segmentos das “Viagens de Gulliver”, de Jonathan Swift, o filme conta a história da procura por um castelo voador mítico (Laputa), que se esconde algures nas nuvens. A chave para encontrar o castelo é a jovem órfã Sheeta, descendente de habitantes de Laputa que desceram à terra e possuidora de uma “pedra de levitação”, que traz no seu encalço agentes do governo, o exército e uma família de piratas do ar. O cenário é o de uma pequena comunidade mineira, baseada numa viagem de pesquisa de Miyazaki ao País de Gales, durante um período da Revolução Industrial retro-futurista, algo consubstanciado, por exemplo, nas máquinas voadoras (a mecânica da aviação é uma das paixões do realizador) onde os piratas se deslocam. Apesar de não ser tão marcante quanto «Nausicaä», «Laputa» é mais um belo filme de animação assinado por um dos fundadores do Studio Ghibli. Por alguma razão, o público espanhol riu-se sonoramente das primeiras vezes que surgiu no ecrã a palavra “Laputa”.

    Conforme referido na introdução, a projecção de «Laputa» teve alguns problemas, com uma certa dificuldade em manter a imagem focada (focando num lado da imagem, desfocava o outro), o que levou a alguns membros da audiência a gritarem “foco!” e à deslocação frequente de pessoas para dentro e para fora da sala, incluindo um senhor com um irritante molho de chaves preso à cintura. A agravar esta situação, as legendas em castelhano perderam a sincronia com a imagem e desapareceram mesmo durante algum tempo (minutos talvez). Quando a situação foi resolvida, os técnicos foram aplaudidos... A projecção parece sugerir a necessidade de uma renovação do sistema. A legendagem electrónica está fadada a não ser 100% segura; quando é impressa na imagem, não pode fugir dali e pode-se sempre corrigir antes de distribuir as cópias, mas quando passa “ao vivo”, há sempre qualquer coisa que pode correr mal. O pior foi mesmo a cópia não ter legendas em inglês impressas e as electrónicas debaixo do ecrã serem pouco adequadas numa sala como o Casino Prado, sem qualquer inclinação na plateia e com o ecrã demasiado baixo. Basta alguém com uma cabeça grande à nossa frente para nos obrigar a ziguezaguear como loucos a tentar acompanhar o texto.

    A Tree of Palme
    Palme, parente afastado de Pinóchio («Palumu no Ki»).
    No que toca ao programa oficial em competição, a primeira obra de animação exibida (sexta, 4) é também originária no Japão e vem assinada por Nakamura Takashi, que conta nos seus créditos a direcção de animação do clássico «Akira» (1987), a colaboração com Miyazaki (trabalhou em «Nausicaä») e a realização de um segmento do filme «Robot Carnival» (1987). O filme chama-se «Palumu no Ki» [A Tree of Palme] e a acção passa-se num espaço e tempo indistintos, arrancando quando um botânico viúvo que vive com um boneco de madeira, Palme, é visitado por uma estranha mulher que lhes deixa uma esfera com um ovo no interior e lhe pede que o entreguem num mundo subterrâneo. Palme, inanimado desde a morte da mulher do botânico, volta à vida, quando julga estar na presença dela, e mete-se sozinho ao caminho. Numa cidade, conhece um grupo de crianças e tem de fugir daqueles que o querem usar para ganhar dinheiro. Encontra também Popo, uma menina infeliz, maltratada pela mãe, e por ela deseja tornar-se humano. O mundo fantástico de «Palumu no Ki» é de uma rara beleza, integrando animação tradicional com elementos criados em computador, com grande eficácia e plena realização estética. A história tem por base uma premissa já muito usada – a busca pela humanidade por parte de um ser artificial –, desde Pinócchio (a referência mais óbvia), passando por «Kokaku Kidodai/Ghost in the Shell» (1995) ou pelos mais recentes «Metropolis» e «A.I.» (2001). Daqui decorre que a originalidade poderá não ser a característica mais marcante desta obra, mas a caracterização de Palme é convincente, transmitindo a sua enorme frustração perante um destino que tenta controlar em vão, revelando-se uma personagem complexa, por comparação com outros "bonecos", e que não consegue ser sempre “bonzinho”. Há uma certa confusão inicial se não fixarmos os nomes de todos os povos e de todos os peões envolvidos na luta pela esfera que Palme transporta, que pode, por si só, sugerir novo visionamento. Outra razão mais que suficiente para o fazer é a beleza gráfica do filme e a excelente qualidade da animação.

    Foto: P. Oliveira
    Julien Magnat
    Julien Magnat a apresentar «Bloody Mallory», antes da projecção de «Patlabor III».
    «Kidou Keisatu Patlabor WXIII» [WXIII Patlabor the Movie 3 ou Patlabor Theatrical Version III] é, como o título indica, o terceiro tomo da série «Patlabor», que começou por existir no formato manga e em série de TV (originadas em 1988). Desta vez é Endo Takuji quem pega nas rédeas da direcção, que esteve a cargo, nos dois primeiros filmes, de Oshii Mamoru («Ghost in the Shell», «Avalon»). Este terceiro filme não tem a animação refinada das melhores obras de animé, mais parecendo um episódio-piloto de TV ou um OAV que se decidiu à última hora preparar para cinema, nem as intricadas intrigas políticas do filme anterior, antes enveredando pelo caminho mais directo da ficção científica e do filme de monstros, numa narrativa que tem por base a manipulação genética. Introduzem-se vários intervenientes – os militares, os americanos, o laboratório, vários grupos dentro da polícia – mas a sua entrada em acção é quase casual e os robots que dão o nome à série (Labors) apenas são chamados a intervir no final. Há uma componente dramática importante, mas não é desenvolvida com grande eficácia, nem as personagens revelam particular tridimensionalidade.

    Como foi referido no início deste texto, houve uma apresentação algo surreal antes do filme, uma vez que se tratava do realizador francês Julien Magnat, que julgava estar na sessão do seu filme «Bloody Mallory» (concorrente ao Meliès), que seria projectado, no mesmo horário, no Casino Prado. Foi curioso que mesmo depois de elementos do público gritarem que estavam ali para ver um filme de animação japonesa, ele insistiu dizendo que não era japonês, mas que a música do seu filme tinha sido composta por Kawai Kenji, que – outra coincidência levada da breca ou um caso de suprema perspicácia por parte dos programadores – assina também a BSO de «Patlabor III». Magnat ainda se sentou para assistir ao “seu” filme, mas já não estava lá quando as luzes se acenderam. A audiência no Casino Prado deve ter esperado algum tempo por ele.

    Mari Iyagi
    Um mundo de fantasia saído de memórias da infância.
    Sem monstros assustadores, o mundo de fantasia do filme coreano «Mari Iyagi» [My Beautiful Girl Mari] é o mundo das memórias da infância, apresentado não só como um tempo mas como um lugar distante, de reencontro impossível. Mas através das memórias do protagonista vamos visitá-lo por alguns momentos, quando este mergulha num período da sua infância quando vivia com a mãe, a avó e o gato e passava os dias junto ao mar ou num farol abandonado. Um dia, encontra um berlinde brilhante, com uma figura no seu interior, que parece abrir a porta para um mundo povoado de criaturas fantásticas, onde se inclui Mari, uma estranha menina voadora, com o corpo coberto de pelo branco. Algumas das criaturas podem fazer recordar «Tonari no Totoro» de Miyazaki, mas o ponto de vista aqui é mais maduro, partindo das reflexões de um adulto. Produzido com um orçamento limitado, com recurso a ferramentas informáticas simples (Flash, Photoshop, Poser, etc.), esta deverá ser uma das obras de animação digital mais baratas da história. Sem chegar a ter um “visual 3D”, o grafismo simples é muito belo e atractivo, com particular destaque para a escolha das cores, dos cenários e do modo como a luz interage com os mesmos. A história é igualmente simples; fracções de momentos da infância, sem peripécias artificiais. Um agradável filme que evoca sentimentos de nostalgia.


    Orient Express

    A Secção Orient Express do Festival de Sitges foi criada no ano passado para fornecer um espaço às novas e fervilhantes propostas, provenientes de territórios asiáticos, com destaque, pela quantidade, qualidade e diversidade da sua produção, para o Japão e para a Coreia do Sul.

    Foram treze os títulos seleccionados para ilustrar a produção asiática, um número que pode não ser particularmente sugestivo, mas há que ter em conta os filmes inseridos noutras secções competitivas, nomeadamente na Fantàstic («The Eye», «Dark Water», «Rokugatsu no Hebi» [A Snake of June] e «Spirited Away») e na Anima't, a que acresce «Dolls», inserido na Gran Angular, e o aborrecido «H Story», uma de Seven Chances. Assim, do Japão tivemos «Koroshiya 1» [Ichii the Killer], «Araburu Tamshii-tachi» [Agitator], «Dead or Alive: Final», todos de Miike Takashi, o último sendo uma co-produção com Hong Kong, e «Chicken Heart», co-produzido pelo Office Kitano. Foram seis as obras coreanas a concurso nesta secção: «Pido Nummuldo Eobshi» [No Blood No Tears], «Gongongeui Jeok» [Public Enemy], «Whasango» [Volcano High], «Boksuneum Naui Geot» [Sympathy for Mr. Vengeance], «Nabbeun Namja» [Bad Guy] e «Say Yes». De Hong Kong, para além da referida co-produção, foi projectado «Suk Saan Chuen/Legend of Zu» (apresentado no catálogo com o título da versão americana, cortada e dobrada pela Miramax, «Zu Warriors»). A fechar o lote, «Devdas», a última mega-produção indiana (o filme mais caro produzido até agora em Bollywood), a dar que falar em festivais e a entrar em alguns circuitos comerciais do Ocidente.

    Sendo previsível o desenvolvimento de texto para a generalidade destes filmes, num novo site de cinema asiático, cuja génese está eminente – e que este texto, entre outras coisas, tem estado a atrasar – vou procurar ser particularmente sintético nas observações efectuadas (no futuro serão criados links, sempre que um novo comentário seja adicionado). [P.S.: o referido site chama-se Cinedie Ásia e arrancou em 1/12/02]

    «H Story» é um filme japonês, integrado na Secção Seven Chances, mas referido neste capítulo por ser onde melhor se encaixará (já que não vi nenhuma das outras seis chances). Esta secção é a Semana Internacional da Crítica, uma selecção de filmes sem garantia de estreia no mercado espanhol apesar do seu mérito artístico, feita por um comité designado pela Associació Catalana de Crítics i Escriptors Cinematogràfics. Aqui temos um conceito que poderia dar resultados mais interessantes: um remake do filme «Hiroshima, mon Amour», de Alain Resnais. O filme não é propriamente um remake, mas um “documentário” sobre o remake, englobando a filmagem das novas cenas, com a actriz francesa Béatrice Dalle como protagonista, bem como imagens dos “bastidores”, com elenco e equipa técnica a usarem os próprios nomes. Muito nouvelle vague, muito aborrecido, parecendo tratar-se de uma colagem de improvisos, sem fio condutor, princípio, meio ou fim. A dada altura Dalle encrava com algumas cenas e o realizador desiste do filme (dentro do filme), o que pode ter algum paralelo com o filme “real”. Poderá ser encarado como um exercício formal e narrativo, se quisermos arranjar forma de dizer algo de positivo sobre ele.

    Para pôr rapidamente de parte a outra entrada negativa na selecção de filmes asiáticos, passemos para «Pee Sam Baht» [Bangkok Haunted], realizado por um dos irmãos Pang, Oxide, e pelo tailandês Pisuth Praesaeng-lam. O filme é constituído por três episódios, sendo os dois primeiros dirigidos por Pisuth e o último e mais interessante (ou menos desinteressante?) por Pang. Histórias de fantasmas e de magia negra, algo artificiais, com actores pouco convencidos do que estão a fazer e sem sustos ou atmosfera capaz de prender a atenção do espectador ao ecrã. A primeira história parecia querer ir a algum lado, mas acaba subitamente com um “buu!”, mandando todo o desenvolvimento precedente – que até me estava a interessar – para o lixo. A certa altura parecemos estar perante um desses programas televisivos de contos eróticos, com três senhoras a contarem as suas experiências e a segunda história assume, de facto, esse cariz, com algumas cenas meio marotas, acompanhando as aventuras sexuais de uma mulher que usa magia negra para conquistar os homens que lhe agradam. Depois é consumir e deitar fora. A última história tem elementos que poderiam potenciar um conto interessante, com uma vingança sobrenatural misturada com uma investigação policial, mas a execução também se revela pouco cuidada, com actores pouco convincentes e uma cena ridícula em que um polícia ameaçado com uma arma deixa as coisas ficarem por ali. Filmes por episódios raramente dão bons resultados.

    Ichi the Killer
    «Koroshiya Ichi»: a má resolução e a escala reduzida da imagem protegem leitores mais sensíveis.
    De entre os filmes mais esperados nesta secção encontravam-se três do prolífero realizador japonês Miike Takashi. Alguns textos muito recentes referem-se a «Koroshiya 1» [Ichi the Killer], como o seu último filme, o que tem graça, já que o realizador já terá assinado provavelmente mais uma dezena de outras obras depois de «Ichi». Os outros dois filmes de Miike projectados em Sitges foram «Araburu Tamshii-tachi» [Agitator] e «Dead or Alive: Final». Este último não tive oportunidade de ver, mas como não vi os dois primeiros da trilogia provavelmente iria ter problemas em absorver plenamente todas as... subtilezas... narrativas.

    «Ichi the Killer», do ano passado, tornou-se rapidamente um filme célebre, gerando um grande culto e colocando-se ao lado das obras mais emblemáticas e populares de Miike, como «Fudoh», «Audition» e «Visitor Q». Ichi (um) é um assassino invulgar, que tenta lidar com sérios problemas emocionais, à medida que chacina aqueles que lhe parecem ser os seus inimigos. Estamos definitivamente perante um indivíduo muitíssimo perturbado. Mas o que dizer de Kakihara, o gangster que procura a todo o custo vingar o seu chefe? Este não é só sádico, como masoquista; Ichi, diz a publicidade, é 100% sádico – uma frase que fica bem no poster, mas que não se ajusta bem a uma personagem com a sua condição de instabilidade emocional. Um terceiro papel relevante é desempenhado pelo realizador Tsukamoto Shinya.

    Deve-se prevenir o leitor e potencial espectador que este é um filme extremamente violento e que usa alguns efeitos digitais muito realistas e convincentes, misturados com os habituais efeitos “orgânicos”. É preciso um certo estômago para visionar este filme do início ao final, pois está muito para lá do tom de um «Fudoh», em que há alguma violência gráfica, mas que parece mais fácil de tomar como parte de um divertimento inofensivo. A violência de «Ichi» é mais "hard-core", se assim se pode dizer, podendo levar algumas pessoas a perder tempo com juízos de moralidade sobre ele, em particular porque Miike não está muito interessado em dar sinais à audiência do que é ou não para levar a sério, nem em apresentar uma condenação moral pelos actos mais vis aqui cometidos. Há muita mutilação gráfica, com recurso sobretudo a lâminas, mas, em alguns casos, é a sugestão que piora o efeito daquilo que mal se vê, como numa cena muito citada envolvendo uma lâmina e duas protuberâncias sensíveis do corpo humano. Por alguma razão o filme passou com imensos cortes em Hong Kong, mesmo na Categoria III, que normalmente admite grandes barbaridades. A submissão ao BBFC no Reino Unido, pela Medusa, é uma total perda de tempo, mas a companhia teve o bom senso e a perspicácia de adquirir os direitos também para a Holanda. A violência do filme não poupa mulheres e crianças (porquê discriminar?) e pode ser preocupante que alguns idiotas na audiência aplaudam uma cena em que uma mulher é esmurrada violentamente (o BBFC alegaria que é por causa deles que tais cenas são censuradas no RU, mas não entendem que os indivíduos em causa já são idiotas antes de verem filmes). Por outro lado, as maiores mutilações também receberam alguns aplausos, não deixando de ser notório que grande parte da audiência teve alguma dificuldade em digerir alguns dos momentos mais chocantes. Na estreia no Japão ofereceram-se saquinhos de vómito aos espectadores e parece que alguns foram usados, sendo frequente um grande número de abandonos da sala, nos vários festivais de cinema por onde o filme tem passado.

    Uma coisa que «Ichi the Killer» tem melhor que outros filmes de Miike é a fotografia, que permite apreciar com grande detalhe cada barbaridade cometida por Kakihara ou por Ichi. Yamamoto Hideo, o director de fotografia, já trabalhou anteriormente em diversos outros filmes de Miike, além de ter fotografado o sublime «Hana-Bi», de Kitano ou «Ring 2», de Nakata.

    Agitator
    Um dos grupos Yakuza em confronto no épico de Miike Takashi, «Agitator», com Kato Masaya em primeiro plano.
    «Agitador» é um épico de gangsters e um filme de Miike mais convencional, talvez feito por medida para todos os que consideram que Kitano deveria fazer mais filmes do género em vez de obras como «Dolls». Com duas horas e meia de duração (de acordo com o catálogo, foi feita uma montagem com mais 40 minutos para vídeo), gira em redor de manipulações políticas entre vários grupos de gangsters, dois principais, mais um sindicato, mais dissidências dentro desses grupos. Temos aqui uma fascinante teia de traições e de movimentações, que constituem um filme narrativamente bem estruturado e recheado com algumas cenas de acção. A violência mais cruel de Miike não está presente, mas um plano em que um indivíduo é retalhado barbaramente com uma lâmina sofreu censura óptica, talvez por haver o intuito de usar o material em vídeo ou TV e não houve preocupação em manter uma cópia “limpa” para a montagem cinematográfica. A única notória marca registada do realizador envolve uma cena em que o próprio se oferece um pequeno papel, num momento em que alguns gangsters se comportam abusivamente contra clientes de um bar, no território de um grupo rival. Digamos que envolve um microfone e que há algum feedback. Vencedor desta secção, ex-aequo com «Bad Guy».

    No que toca aos coreanos, começamos por «Pido Nummuldo Eobshi» [No Blood No Tears], com realização de Ryu Seung-wan, conhecido pelo low budget «Jukkeona Hogeun Nappeugeona» [Die Bad]. Pode-se considerar a sua estreia na longa-metragem, uma vez que «Die Bad» partiu da montagem de quatro curtas-metragens em 16mm. Duas mulheres – uma taxista e a namorada de um gangster –, fartas de abusos e de falta de dinheiro, decidem unir-se num golpe e fazer seu um saco cheio de dinheiro. Intricado, um jogo com muitos peões, com muitas traições e reviravoltas, lembrando algumas obras de Mamet, mas sem os diálogos coloridos, e com algumas cenas de acção de algum impacto, apesar de permanecerem sempre secundárias em relação ao drama. Algumas cenas de lutas de cães provavelmente não seriam aprovadas pela American Humane Association nem pelo BBFC (que, no entanto, deixou passar a morte de toiros no último Almodóvar).

    No Blood No Tears Public Enemy
    Posters para dois bons títulos coreanos, produzidos este ano: duas mulheres contra todos, em «No Blood no Tears» (esquerda); dois homens à margem da lei, num conflito sangrento, em «Public Enemy» (direita).
    «Gonggongeui Jeok» [Public Enemy] é uma espécie de thriller policial, em redor de duas personagens pouco simpáticas: um polícia corrupto que regride progressivamente na carreira e um bem sucedido corretor bolsista, a fazer lembrar vagamente Patrick Bateman, o psicopata americano de B.E. Ellis. A introdução desta personagem também faz lembrar «American Beauty», mas não há comparações possíveis entre Cho e o Lester Burnham de Kevin Spacey, percebendo-se imediatamente que o mesmo elemento é usado para caracterizar personalidades radicalmente diferentes: Cho está tudo menos frustrado com a vida que leva e se há algo que ele não gosta ou alguém se mete no seu caminho, não hesita; veste o seu impermeável e sai à rua. Há textos que tecem comparações com Dirty Harry, mas o detective Kang é desprezível e patético e a sua gaveta está limpinha, não por ser organizado, mas porque não faz o seu trabalho – apanhar criminosos. Quando é forçado a apresentar resultados, fá-lo desonestamente, apesar de andar a ser investigado pelos Assuntos Internos, por andar metido em toda a espécie de ilegalidades, que incluem um saco de droga que transporta no banco de trás do carro, logo na abertura do filme. O polícia é repugnante, e nós queremos vê-lo a pagar pelos seus actos o mais rapidamente possível, mas quando aparece um indivíduo bem mais desprezível – que constitui também uma oportunidade de redenção do polícia – as nossas expectativas têm tendência em mudar. Bom texto, muito bem filmado e ainda melhor interpretado.

    «Boksuneum Naui Geot» [Sympathy for Mr. Vengeance] não envolve nos papéis centrais gangsters ou polícias, apenas pessoas normais. Ryu, surdo-mudo, e a namorada tentam arranjar formas de obter um rim para poder salvar a irmã dele, mas as coisas correm sempre pelo pior. Um rico industrial, que nunca fez mal a ninguém, vê-se envolvido com o casal, havendo ainda pelo meio uma operação familiar de tráfico de órgãos, que funciona como catalizador do choque entre as duas partes principais da trama. Todos têm boas intenções, mas as circunstâncias levam-nos a cometer ou a serem responsáveis por actos terríveis. Filmado de modo muito distanciado por Park Chan-wook, realizador do segundo filme mais bem sucedido nas bilheteiras sul-coreanas, «JSA» (2000), com uma excelente fotografia, que reforça o contraste entre a beleza estética das imagens e da composição com actos terríveis e sangrentos, apresentados no ecrã. A câmara recusa-se a ajudar o espectador a valorar moralmente os actos ou a sentir o que quer que seja pelas personagens e a banda sonora não fornece as "cues" esperadas. Tudo é muito frio (como uma caixa de gelo usada para transportar um rim) e somos forçados a fazer os nossos julgamentos desprovidos de ajuda “cinematográfica”. Um drama de grande impacto, com explosões de violência crua, que despontam quase sem aviso, a pedir uma revisão quase imediata.

    Sympathy for Mr. Vengeance
    (Shin Ha-kyun e Bae Doo-na)
    O realismo frio e cruel de «Sympathy for Mr. Vengeance»,
    Volcano High
    a fantasia de artes marciais de «Volcano High» e o mundo mais abstracto
    Legend of Zu
    de «Legend of Zu», de Tsui Hark.
    Em tom mais ligeiro, concluímos com dois festins de efeitos visuais, «Whasango» [Volcano High], ainda na Coreia do Sul, e «Suk Saan Chuen/Legend of Zu», de Hong Kong. Dois filmes muito diferentes, mas unidos pela mitologia do wuxia. «Legend of Zu» é uma revisitação de Tsui Hark ao seu original de 1983, com imortais em luta contra a ameaça do mal, na forma de uma criatura chamada Insónia, que ameaça aniquilar todos os clãs que vivem nas ilhas voadoras sobre as montanhas de Zu. Longe do melhor de Tsui, «Legend of Zu» é um daqueles filmes com demasiados pormenores para uma duração tão curta, algo que o realizador parece apreciar (rechear bem os filmes, mas tentar a montagem mais curta possível, com sacrifício de alguma coerência). Com um apoio substancial em efeitos digitais, todo «Zu» parece um mundo aparte, com poucos pontos de referência com o mundo real, englobando algumas “pinturas digitais” bem bonitas, como os raios de energia lançados das mãos de Cecilia Cheung Pak-chi.

    «Whasango» envereda por um cenário retro-futurista, com edifícios que poderiam sair do século passado, no meio de referências modernas, como se se tratasse de um presente alternativo ou de um futuro distante. A acção passa-se numa escola onde vários estudantes competem e combatem pelo título do número um. E não me estou a referir às notas. O director da escola é o guardião de um pergaminho – um elemento clássico do wuxia – que, como não podia deixar de ser, concederá grande poder a quem o possuir e dominar. O caos reina na escola depois do director e do estudante número 1 serem postos de parte e a chegada de um novo aluno, continuamente expulso de várias escolas por não controlar as suas capacidades físicas, vai potenciar novos conflitos. Um grupo de professores, especialistas em pôr alunos na ordem, é chamado à escola. Acção frequente, com algum “slapstick” à mistura, com efeitos visuais competentes, usados sobretudo como auxiliar dos “wireworks” já que as personagens passam grande parte do filme no ar.


    Perdidos (ou adiados)

    Lamento profundamente não ter podido assistir a vários filmes. Por ordem do suspiro mais longo até ao suspiro mais curto: «Sen to Chihiro no Kamikakushi», «Cowboy Bebop: Tengoku no Tobira», «Rokugatsu no Hebi», de Tsukamoto Shynia, autor dos «Tetsuo», «Darkness», «800 Balas», «Dead or Alive: Final», «My Little Eye» (“o filme mais assustador de 2002”, na capa da Sight and Sound), «The Rules of Attraction», a partir da obra de Easton Ellis e «Dog Soldiers», lobisomens num cenário de guerra.







    Nota: não assisti às projecções no festival de «Legend of Zu», «Sympathy for Mr. Vengeance», «Volcano High» e «My Beautiful Girl, Mari», mas incluí as respectivas referências para que a informação sobre o panorama dos filmes apresentados no festival fosse o mais completa e diversificada possível.






    III – Palmarés
    Secção Oficial Fantàstic

    Melhor filme: «Dracula: Page's from a Virgin's Diary», de Guy Maddin
    Melhor realizador: David Cronenberg, por «
    Spider»
    Melhor actor: Jeremy Northam, por «Cypher»
    Melhor actriz: Angela Bettis, por «May»
    Melhor argumento: Lucky McKee, por «May»
    Melhor Fotografia: Decha Srimantra, por «The Eye»
    Melhores efeitos de maquilhagem: Robert Kurtzman, Greg Nicotero e Howard Berger, por «Cabin Fever»
    Melhor direcção artística: Shinya Tsukamoto, por «A Snake of June»
    Melhores efeitos visuais: Richard R. Hoover, por «Reign of Fire»
    Melhor banda sonora: Sonic Youth, por «Demonlover»
    Melhor curta fantástica: Hélène Cattet e Bruno Forzani, por «La Chambre Jaune»
    Menções especiais:
    «Sen to Chihiro no Kamikakushi» [Spirited Away] de Miyazaki Hayao
    «Honogurai Mizu no Soku Kara» [Dark Water] de Nakata Hideo

    Secção Gran Angular

    Prémio do público para o melhor filme: «Cravan vs Cravan», de Isaki Lacuesta

    Secção Anima't

    Prémio para o realizador da melhor curta de animação: Jérôme Boulbès, por «La mort de Tau»
    Menção especial: John Weldon, por «The Hungry Squid»
    Prémio do público para a melhor curta-metragem de animação: «Last Rumba in Rochdale», de John Chorlton
    Prémio do público para a melhor longa-metragem de animação: «Mercano el Marciano», de Juan Antín

    Secção Orient Express

    Prémio para a melhor longa-metragem de produção asiática:
    «Araburu Taashii-Tachi» [Agitator], de Miike Takashii
    «Nabbeum Namja» [Bad Guy], de Kim Ki-duk

    Prémio da Crítica José Luis Guarner: «Demonlover», de Olivier Assayas

    Prémio Citizen Kane, para o realizador-revelação: Isaki Lacuesta, por «Cravan vs Cravan»

    Prémios Méliès de Prata, para a melhor longa-metragem de fantástico europeia: «El segundo nombre», de Paco Plaza.

    Prémio para a melhor curta-metragem fantástica europeia: «Cry for Bobo», de David Cairns.

    Prémios Nova Autoria:
    Melhor realizador: Albert Pérez, ESCAC, por «Killing the spot» Melhor argumento: Nacho Moliné, ESCAC, por «Era que no era» Melhor banda sonora original: Ekaterina Nocolova, CECC, por «Todo lo sólido»

    Prémio La General, prémio honorífico do festival, para: Mr. Dino de Laurentiis

    16/10/02

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