Mononoke, o Espírito da Dobragem

«Mononoke Hime» de Miyazaki Hayao, um dos mais importantes e influentes artistas a trabalhar actualmente no cinema de animação, estreou em Julho de 1997 no Japão, vindo a revelar-se um monumental sucesso de bilheteiras. Seria o filme mais rentável de sempre naquele país até à estreia de «Titanic». O sucesso na Ásia não é indicador de igual sucesso em países ocidentais: o filme estreou em Outubro de 99 nos EUA, em Janeiro de 2000 em França e em Junho em Portugal.

Em 1996, a Disney e o grupo Tokuma assinam um acordo, nos termos do qual o gigante americano passa a distribuir filmes e videogramas produzidos no seio do grupo japonês. A Tokuma engloba as Publicações Tokuma Shoten, o Estúdio Ghibli e a produtora Daiei. Numa primeira fase, a Disney irá distribuir os seguintes filmes: «Mononoke Hime/Princesa Mononoke», «Kaze no Tani no Nausicaä/Nausicaä of the Valley of the Wind», «Tonari no Totoro/My Neighbor Totoro», «Omohide Poroporo/Only Yesterday», «Pom Poko», «Tenko no Shiro Laputa/Laputa: The Castle in the Sky», «Majo no Takkyubin/Kiki's Delivery Service», «Kurenai No Buta/Porco Rosso», «Mimi wo Sumaseba/Whisper of the Heart» e «Shall We Dansu?/Dançamos?» (o único do pacote em imagem real, produzido pela Daiei, estreado em Portugal em Janeiro de 1998)

«Princesa Mononoke» deverá ser o primeiro título de animação japonesa a ter estreia comercial em Portugal. Apesar de existirem cópias legendadas (em inglês), a versão que pudemos ver é a dobrada. A dobragem foi feita para um grande público americano, que não gosta de ler legendas. No entanto, em Portugal as cópias são dobradas e legendadas. Deveremos ficar agradecidos, com base no velho mote conformista “Há Coisas Piores”?

San e Ashitaka
Há um abismo cultural que nos separa... Apesar de ambos falarmos um
inglês perfeito.
Adaptação. Harvey Weinstein, da Miramax Films quis dar o melhor tratamento possível à versão americana da «Mononoke Hime». A quem decide telefonar? Quentin Tarantino. Este, por sua vez, responde a Weinstein dizendo-lhe que o homem indicado para o trabalho é Neil Gaiman, o respeitado autor da série de BD “Sandman”. Gaiman afirmou ter decidido pôr mãos à obra, por considerar que mais valia ser ele a assinar a adaptação do que outra pessoa sem qualquer consideração pela obra. “I thought that if I fucked it up I'd fuck it up with respect and love, and better that than somebody who doesn't care about it ruining it”, terá dito.

Procurou-se alcançar um compromisso entre a fidelidade à obra original e a compensação devida pelo background cultural, sobre história e mitologia japonesa, que o espectador médio americano não tem. O segundo princípio parte de uma lógica ligeiramente pervertida, que se entende porque os EUA, na vertente Hollywood-Disney, são uma nação onde a entrada de elementos de culturas estrangeiras é mínima. Ou seja, afirma-se que um público de determinada cultura ou país não pode ser exposto a uma cultura diferente, sem estar constantemente a questionar as coisas que não compreende, como se pudesse esperar e lhe fosse legítimo exigir sempre que as outras culturas se “façam entender”. É este princípio que tem exigido a Americanização dos filmes estrangeiros, que normalmente passa por acções como a censura, a remontagem, a alteração do sentido de segmentos inteiros e a dobragem. O mecanismo é algo irónico, para não dizer hipócrita. Começa-se por comprar um filme por ter algo de diferente, fruto de uma sensibilidade que não pertence ao país ou a Hollywood e termina-se a tentar fazer a obra o mais hollywoodesca possível. [Exercício mental: visualizar o seu filme japonês de época favorito, adaptado para as massas americanas do futuro, onde os pauzinhos e os kimonos foram substituídos digitalmente por talheres “a sério” e fatos e gravatas.]

Vender o filme. «Mononoke Hime» apresentava outro problema para a Miramax. Ser um filme animado. Qualquer distribuidor com sinais de dólar nos olhos (e devem ser às centenas) quer duas coisas num filme animado: uma classificação para todas as idades e uma “história Disney”, com os eventuais momentos de tensão aliviados por comic relieves e pontuado por uma série de momentos musicais épicos. Além de um elenco de estrelas, claro. As questões relacionadas com a escolha do elenco, não podem trazer senão problemas menores. É escolher e pagar os salários. (Aparentemente Leonardo DiCaprio chegou a ser considerado, o que seria curioso – a reunião de “Romeu e Julieta”.)

A classificação etária era algo mais problemático. O filme destina-se sobretudo a adultos, sendo subjectivo sugerir idades mínimas recomendadas. O realizador considera o filme apropriado para qualquer criança com mais do 5º ano, ou seja a partir dos 10-12 anos. Parece ser indiscutível que o filme não é adequado para crianças muito pequenas, não só pela violência gráfica (infrequente), mas pela duração do filme e pela complexidade temática e narrativa. Sendo animação e classificado M/6 por cá, é inevitável que muitos pais mal informados levem as suas crianças pequenas, que não sabem ler, para a sala de cinema, à espera de um entretenimento levezinho. O M/12 seria natural e os pais poderiam na mesma levar os filhos ao cinema, tendo em atenção a necessidade de pelo menos terem capacidade de ler legendas. A existência de legendagem nos cartazes e nas bilheteiras, perante o apelativo M/6, era o mínimo que se poderia ter feito para informar o público.

BSO
Banda Sonora Original de Hisaishi Jo. A edição com o escudo
de bronze na capa (poster Miramax) contém as versões inglesas
das canções.
Voltando à Miramax: nos EUA a consequência natural de uma temática madura e de meia dúzia de cenas de “gore”, ainda que num filme de animação, torna inevitável o “PG-13”, recomendando aos pais particular cautela no acesso dos menores de 13 anos. Do prisma do executivo de um estúdio, animação sem uma classificação para todos os públicos é algo a evitar por todos os meios. O Estúdio Ghibli e a Tokuma, onde aquele se integra, não são propriamente empresas desesperadas por vender os seus produtos ao estrangeiro, em quaisquer condições. E para Miyazaki já tinha sido um choque saber que a edição antiga de «Kaze no Tani no Nausicaä» («Nausicaä of the Valley of the Winds») havia sido grosseiramente censurada e remontada pela New World Pictures - sob o título «Warriors of the Wind» -, que considerou existirem no filme 25 minutos sem qualquer interesse. Assim, o acordo Tokuma-Disney expressa claramente que nenhuma alteração será feita pela Disney ao conteúdo dos filmes, para além da legendagem ou dobragem.

Na Miramax não se deve ter ponderado muito o assunto. Afinal, se era animação que espécie de problemas é que poderiam despontar? Animação... You know, for kids. Mas, quando chegou o momento da verdade, vieram também as hesitações. Não se sabia bem o que fazer com o filme. Harvey Weinstein insistiu tanto quanto pôde para que o estúdio japonês concordasse com uma série de alterações sugeridas. Não se trataria apenas de cortar uns segundos de violência - se era para “adaptar”, porque não ir até ao fim? -, pois os americanos mostraram-se preocupados mesmo com a utilização de alguns efeitos sonoros ou trechos do “score” musical mais tensos.

Quando na Miramax entenderam finalmente que nunca os deixariam remontar «Mononoke Hime», depois do investimento feito numa “dobragem de qualidade”, havia que escolher o momento do lançamento. A data de estreia viria a ser adiada várias vezes e, no início, ainda se falaria numa estreia ampla da versão inglesa, acompanhada de uma exibição mais limitada da v.o., nas cidades maiores e em salas dedicadas a cinema de “arte”. Algum tempo depois, o lançamento da v.o. foi posto de parte. O filme estrearia em 29 de Outubro de 99, inicialmente apenas em quatro cidades americanas, passando para mais umas 14 na semana seguinte e, no final desse mês, para um número mais vasto de cidades. A estratégia, se existiu, não se revelou muito boa, em particular porque não houve promoção digna desse nome. A Miramax não terá sabido como gerir um filme de animação não destinado ao público infantil ou às famílias, nem parece que se tenha esforçado por atingir a audiência potencial de um produto com tais características.

Vejamos os trailers. Enquanto os japoneses apresentam uma montagem dinâmica e estimulante, mostrando momentos representativos da excelente animação e exemplos da algumas das cenas violentas, o americano opta por uma aproximação diferente. Está lá “A Voz” habitual a banalizar o discurso, com os típicos “In a time..., in a world...” e a dar primazia ao elenco de estrelas, algo que nem sequer faz parte da obra original, não se esquecendo, no entanto, de informar a audiência de que se trata de um filme de “Miyazaki, mestre da animação japonesa”. Isto é normal sempre que se tenta vender um realizador ou actor a um público que se presume sempre nunca ter ouvido falar de tais pessoas. Curiosamente, ou talvez não, a arte está cortada lateralmente, preparada para exibição televisiva, mas o formato do filme é preservado no momento em que se colocam no ecrã os nomes dos actores de dobragem. Em relação ao trailer, há um detalhe digno de registo. Houve um número relevante de reclamações pelo facto de “mononoke” ser pronunciado “ki” em vez de “ké”. O ridículo é o ultraje do público por tal picuinhice, quando se trata de uma versão que não é falada no original japonês. E ridículo também é o estúdio acabar por refazer o trailer com a pronúncia corrigida.

A Miramax também preferiu não usar a imagem do poster original, com San frente a Moro, com a boca e o rosto cobertos por sangue. Então é que os pais não deixavam os miúdos aproximarem-se do multiplex mais próximo. Criou-se um grafismo próprio, pegando numa das imagens mais conhecidas do filme e passando-a por um qualquer filtro do Photoshop, que lhe dá um aspecto de medalhão de bronze. A frase “O Destino da Humanidade Depende da Coragem de um Guerreiro” é completamente desproporcionada e tenta convencer-nos (o “nosso” poster é o mesmo, claro) que se trata de um qualquer épico hollywoodesco onde o herói da história tenta salvar o mundo. Hello? Nem todos os filmes se reduzem à destruição do mundo pelo vilão de serviço. E, bem, para continuar a “pôr defeitos”, a imagem representa San e nós sabemos que o herói do filme, o guerreiro, é Ashitaka.

Alterações e dobragem. A audiência nunca iria perceber que o corte do cabelo significava que Ashitaka não iria voltar à aldeia e, se isso não sucedesse no final, sentir-se-ia enganada. Houve pois que introduzir referências extra ao corte do cabelo, como símbolo do fim da sua ligação com o seu povo. Quando o monge toma a sopa, comenta originalmente se é sopa ou água, o que é considerado um comentário extremamente insultuoso pelos padrões japoneses. Desse modo, transformou-se água em mijo de burro; algo mais próximo dos padrões ocidentais. Gaiman introduziu outras linhas de diálogo, como Eboshi a dizer algo como “Vamos lá, temos de levar este arroz para casa, ou não comemos!” Os espectadores também nunca perceberiam sozinhos a importância do transporte de víveres, nem entenderia o arroz, negociado em troca de ferro, como base do sustento do povo (afinal a maioria come hamburgueres, frango frito, etc.) No original a rapariga que dá a adaga a Ashitaka não é sua irmã, mas a sua noiva. Também me parece que o texto introdutório foi forçosamente tornado explicativo, mas só o poderei confirmar mais tarde.

Billy Crudup, que dá voz a/sobre Ashitaka disse ter-se inspirado no actor japonês, e comenta: “Quem me dera que pudessem ouvi-lo. É um belo trabalho.”

Gaiman disse que a maior frustração, durante o trabalho de adaptação, era encontrar uma frase bela e poética, que traduzia o que era dito no original na perfeição, mas não poder usá-la, porque os movimentos das bocas não coincidiam. Surpresa de iniciado, certamente, porque moldar o texto de acordo com os movimentos de boca originais faz parte do conceito de dobragem.

Miyazaki Hayao
Miyazaki sensei
Miyazaki referiu ter ficado satisfeito com o trabalho de dobragem de «Princess Mononoke». No livro de Helen McCarthy, “Hayao Miyazaki, Master of Japanese Animation", o realizador é citado dizendo que o elenco que deu voz à versão francesa de «Kurenai No Buta/Porco Rosso» (1992) (Jean Reno, no papel principal) efectuou um trabalho melhor que o dos actores japoneses. Bom, o filme passa-se na Europa. Se calhar, personagens a falar “europeu” reforçam a atmosfera?

Há que cruzar o parágrafo anterior com outros pensamentos de Miyazaki. Primeiro, quando faz um filme, não está a pensar nas reacções do público que não seja o do seu país natal. Segundo, tem sempre afirmado que os seus filmes são concebidos para serem vistos num ecrã de cinema. Diz o autor japonês que não quer saber se alguém viu um dos seus filmes em vídeo 50 vezes, porque nesse formato não passam de música de fundo. Talvez isto ajude a entender como o realizador fica feliz pelo facto de que os franceses ou os americanos tenham uma versão “bem dobrada” para consumo interno. Talvez nem lhe fizesse muita confusão – se, por qualquer razão, realizasse exercícios mentais sobre situações ridículas – que os portugueses, que não dobram por sistema senão filmes infantis, e ainda assim quase sempre com alternativa, estivessem a ver a versão dobrada para uma audiência da língua inglesa, que prefere não ler no cinema, com legendas em português por cima. Porquê? A animação, a arte onde põe toda a sua alma, está lá. E os temas também, parcialmente, e como nunca seriam transmitidos a 100% para uma língua estrangeira, bem, enfim, há males menores.

Portugal. Por cá, não se deu muita importância ao facto de termos uma cópia legendada em cima da dobrada para consumo anglo-saxónico. Para além de Eurico de Barros do “DN” e, segundo me disseram, o crítico do “Blitz”, não creio que tenham existido muitos comentários públicos se não a condenar, pelo menos desgostosos com este disparate. Alguns textos passaram ao lado da questão da linguagem, outros diziam que a dobragem (ou “adaptação para língua inglesa”, que soa muito melhor) estava muito boa e que Neil Gaiman para aqui, Neil Gaiman para ali. Confesso-me um pouco deprimido com a incompreensão que algumas pessoas demonstraram em relação ao facto de eu considerar ultrajante a exibição de «Mononoke» na versão dobrada em inglês. “Mas, é Neil Gaiman, estás a ver, o tipo que fez isto e aquilo!” Toda a gente tem direito a ser feliz, a ter opinião ou a ser um “fanboy” ferrenho, mas porquê desvalorizar o que é mais importante? O que é que a boa ou má adaptação têm a ver com isto? Se a distribuidora nacional quisesse, teria legendado sobre a versão original (a Miramax tem os direitos para o filme todo). O filme não ia ter legendas de qualquer forma? Qual a diferença? Porquê apresentar a versão alterada para outro mercado, para outras pessoas, com outro modo de pensar, com o texto em português que teria sobre o filme no seu estado original, integral? Porquê? Só porque é mais fácil? Porque o público não quer saber, os resultados de bilheteira são os mesmos e o filme, de qualquer forma, veio num pacote com títulos mais rentáveis? [ver adenda, abaixo]

Não nos tentem convencer que nos devíamos sentir agradecidos. MC Ferreira disse no “Expresso” que a estreia do filme “só foi possível devido à distribuição nos EUA pela Miramax”. Isto soa a algo muito positivo. É lamentável que um filme japonês (ou vietnamita, ou argentino ou bofatatsuano...) só estreie em Portugal porque um estúdio americano o decidiu comprar. A maioria dos filmes que por cá passam são americanos e começa agora a parecer que devemos ficar satisfeitos se os EUA tratarem da distribuição nacional do resto da produção mundial. Depois de processos de adaptação e filtragem, considerados adequados para levar o produto ao americano médio. Pessoalmente, preferiria que os distribuidores locais tivessem interesse e meios para seleccionar filmes de géneros e nacionalidades diversos. Mas, enfim, é verdade que somos um país pequeno e pobre. Assim, ficaria eufórico se os nossos distribuidores solicitassem à casa-mãe as versões originais para uma distribuição local em cópias legendadas, sobre a língua original.

Este filme é menos “sério” do que «O Verão de Kikujiro», que foi, se não estou em erro, o último filme japonês a estrear entre nós (passando ao lado do «Pokémon», um óbvio produto infantil)? Será que só vemos filmes como os de Kitano, Imamura, Tsai ou Wong – para citar alguns dos escassos cineastas asiáticos cujos filmes têm sido exibidos nas nossas salas – na língua original, porque não chegam através dos EUA e porque aí se considerou que não funcionariam perante o grande público? Estará a distribuidora nacional a considerar repôr «A Vida É Bela», para testar por cá a versão em inglês, produzida pela Miramax, depois do grande sucesso do filme (em italiano)? (E sabemos bem como os italianos não ligam muito à sincronização dos lábios com os diálogos; seria uma boa oportunidade para melhorar esse aspecto.)

O argumento de que a animação “é dobrada mesmo na língua original” foge à questão primordial. O filme é japonês, tem personagens japonesas e, mais importante, é originalmente falado em japonês. A banda sonora foi criada pelos cineastas, tal como as imagens expostas na película. A discussão seria outra, se estivéssemos a falar de dobragem em português, mas será que se existissem duas cópias em exibição a “versão original” seria outra? Não entendo mesmo a pretensa maior elegibilidade do filme animado para ser dobrado. É porque, quando se trata de imagem real, conhecemos as vozes dos actores originais? Bocas, reais ou desenhadas, produzem movimentos semelhantes. Abrem e fecham, assim: “aah, mmm, oohh”, etc. É igual. Normalmente criam-se cartas de lip-synch, nas quais o animador se baseia para desenhar as bocas, em sincronia com o som, algo inato nos mecanismos da fala. Isto é, em imagem real basta o guião. Na dobragem, seja sobre animação ou sobre imagem real, o tradutor tem de optar pelo texto mais apropriado ao movimento dos lábios em detrimento da melhor tradução.

Eboshi
Eboshi, a mais british das damas japonesas, e as suas protegidas.
Quanto à dobragem de «Mononoke Hime», pois bem, admito ter conseguido deixar-me levar pela beleza do filme. Das imagens e da narrativa. Mas a força é sempre a do filme original, que consegue respirar por debaixo da pista de som que lhe puseram por cima, graças à arte de Miyazaki e da talentosa equipa de animadores do estúdio Ghibli. A dobragem é, pondo-o curto e claro, a maior glorificação de uma adulteração de que tenho memória. As bocas “colam” razoavelmente bem, mas há vozes completamente deslocadas do sentir da personagem. Excluindo a sensação estranha de ouvir todos a falarem numa língua que não é a natural, destoa logo a voz da vidente da aldeia, de Gillian Anderson (Moro), de Billy Bob Thornton (Jiko) e de Minnie Driver (Eboshi). Anderson parece estar noutro filme. Já Driver nem por isso; fica mesmo bem num filme americano. Se ela é “uma espécie de vilã”, a sua pronúncia britânica ajusta-se na perfeição. Hollywood tem predilecção por vilões britânicos, com pronúncia vincada. Além de que Eboshi é “Lady” e a pronúncia ajusta-se perfeitamente à suposta natureza aristocrática.

Nota final. Tal como o lançamento do filme em sala, a saída em VHS e DVD nos EUA foi passando por diversas datas. Era esperado que o DVD e, possivelmente, uma edição “especial” em cassete vídeo, apresentassem o filme no formato original, em japonês com legendas. A espera culminou com a decepção do anúncio do lançamento do DVD apenas com a versão dobrada em inglês (e com o “bónus” da versão francesa, para o mercado canadiano francófono). A motivação na base desta decisão foi o pedido da Buena Vista japonesa, receosa de sofrer perdas económicas com as importações de um produto muito mais barato (um DVD no Japão custa facilmente 10 mil escudos, e o de «Mononoke» está ainda por lançar, mesmo no país de origem). Será que a política das Regiões é insuficiente para certos estúdios? Que quererão a seguir? Força de lei? Raids às casas dos "criminosos" importadores de filmes?

Globalização?

San e Moro
San, a Princesa mononoke, e Moro
Felizmente, tudo parece ir terminar de modo positivo. Os consumidores uniram-se, manifestando-se contra a exclusão da pista original – e como pode a Disney tratar a pista original como um extra dispensável? – através de petições enviadas por e-mail ou carta e cancelando as pré-encomendas nas lojas online. De acordo com a Nausicaa.net, o número de pessoas que se manifestaram contra a edição anunciada foi de aproximadamente 6 mil, somando-se à sondagem organizada pelo site à petição do DVDTalk. E assim, no momento da escrita destas linhas, a data de 29 de Agosto foi cancelada, esperando-se nova data, em princípio até ao fim do ano, para uma edição completa, sem excluir o som original. Espera-se que isto funcione como precedente. Se as pessoas não se limitassem a lamentações nos fóruns da Usenet e se manifestassem perante os distribuidores, estaríamos muito melhor servidos no que toca à qualidade das edições vídeo, nacionais ou de importação. Sim, porque é óbvio que a alteração não se baseia em qualquer súbita constatação de que o som original é parte integrante do filme e não um “extra”, mas apenas nos números: 6 mil vezes 30 e tal dólares constitui um resultado na ordem das dezenas de milhar de contos que a Disney gostaria de ver a entrar nos seus cofres.

Neste momento, existem apenas três filmes de animação de Miyazaki e Takahata, mentores do Estúdio Ghibli, para compra em DVD, apesar de existir algo mais em VHS, inclusive por cá, em alguns cestos de hipermercados nacionais, com dobragens locais ou importadas do Brasil. Nenhum destes três filmes é distribuído pela Disney, que por esta altura já podia ter colocado no mercado uma boa meia dúzia de filmes de animação japonesa de grande qualidade técnica e artística, já que detém os direitos de distribuição para os filmes mais importantes do referido estúdio. Esses filmes são «Castle of Cagliostro» (EUA, Manga Video) e «Porco Rosso» (França, Canal Plus), ambos de Miyazaki e «Grave of the Fireflies» (EUA, Central Park Media), de Takahata Isao. Todos contém a pista de som original.

Referências/leitura recomendada:
Revista Animé Land, número especial dedicado ao estúdio Ghibli (França, Janeiro 2000);
Hayao Miyazaki, Master of Japanese Animation, Helen McCarthy (Stone Bridge Press, EUA 1999);
Nausicaä Nethttp://www.nausicaa.net

Imagens de «Mononoke Hime» © 1997 Nibariki.

30/07/00


Adenda

Como se previa na data da elaboração do texto acima, o DVD (Região 1) americano contém a pista sonora original em japonês, para além da dobragem em inglês e uma pista em francês para o mercado canadiano. Essa edição saiu em 19 de Dezembro de 2000. Nessa data, a grande maioria das lojas de venda on-line esgotou os stocks, alguns sem poderem prever quando os conseguiriam repor. Ao que parece, a Buena Vista não estava à espera de vendas relevantes, tendo em conta que «Princess Mononoke» foi um título que passou nas salas com um certo low profile. Apesar de dobrado. Esperemos que se chegue à conclusão que a inclusão da pista original, uma exigência dos consumidores mais cinéfilos, foi importante para os bons resultados de vendas e que tal constitua precedente na edição dos títulos Ghibli que a Disney detém em carteira. O DVD americano não é uma edição a que se tenha dedicado particular atenção (nem a Miramax é famosa por “edições especiais”; é mais conhecida pelas suas “versões”), incluindo apenas um trailer e uma featurette, a qual se resumirá a comentários curtos, por parte das estrelas que dobraram o filme..

Quando receber um exemplar, espero comentá-lo por aqui, complementando também a apreciação do filme, no seu estado integral.

A 25 de Janeiro, chega ao nosso mercado a edição da LNK da «Princesa Mononoke», que será provavelmente o primeiro DVD europeu do filme e um dos primeiros a nível mundial. Infelizmente, o disco não inclui a pista original, apesar dos esforços do distribuidor nacional. De acordo com Luis Froes, da LNK, para além do trailer e da featurette, presentes na edição americana, inclui-se: galeria de imagens, biofilmografias, processo de dobragens (em filmagens - bastidores ) e entrevistas com actores.

A referida fonte frisa ainda, no que toca a exibição em sala do filme de Miyazaki, que a Miramax disponibilizou somente a versão dobrada em inglês, e que as tentativas de contacto com o estúdio Ghibli se revelaram infrutíferas.

Compete-me admitir alguma culpa, por não ter tentado mais firmemente obter a posição da distribuidora, antes da escrita do texto original, algo que os (poucos) críticos de jornais nacionais que reclamaram contra a exibição da cópia dobrada, também parecem não ter feito (apesar do acesso privilegiado às fontes). Como atenuante, a distribuidora nacional dos filmes da Miramax ignorou anteriormente pedidos de comentário a outras edições americanas, dobradas e censuradas.

O aparente bloqueio, ou mera má vontade, por parte da Miramax, é o que mais se lamenta. Qual a razão de não ceder a versão original a um país estrangeiro que apresentará o filme legendado? No que toca ao DVD isto é mais grave, porque que a edição americana acaba por conter a pista em japonês. A recusa não será, certamente, baseada no medo de exportação de cópias para os EUA, tendo em conta que passará mais de um mês depois da edição local e que o preço é claramente inferior. Quanto ao estúdio japonês, custa a crer que não respondam às solicitações de um distribuidor dos seus filmes. Aparte a falta de comunicação, acho que se pode entender que o estúdio se concentre no mercado japonês, já que a Disney tem os direitos de distribuição para todo o mundo, fora do Japão.

A culpa é toda do Rato Mickey.

11/01/01

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