Aversão a Versões

Um filme pode ser o resultado criativo de um ou de vários indivíduos, ou, mais vulgarmente, uma encomenda de um estúdio, que contrata várias pessoas para porem em pé um projecto de acordo com linhas gerais pré-definidas. É fácil de conceber que diferentes aproximações a um tema ou a um argumento abrem infinitas possibilidades. Se todas as pessoas são diferentes (?), um filme poderia ser diferente de acordo com a pessoa que o fizesse. Claro que na prática se o estúdio é o mesmo, os critérios são os mesmos, e o resultado andará sempre próximo. Mas, neste caso, quase se pode dizer que o "processo criativo" é do estúdio.

Evitando entrar na temática da arte e do comércio e do controle final sobre o filme, até porque outras secções poderão focá-la com mais atenção, peguemos apenas no filme em abstracto, a partir do momento em que está concluído. O problema é: quando está concluído? É que não é invulgar que um filme sofra alterações mesmo depois de lançado no mercado.

Censura, meras preocupações com a "excessiva" duração, que elimina uma sessão diária, tentativa de vender o mesmo produto várias vezes, são factores que provocam que pululem versões diferentes dos mesmos filmes.

Muitos países têm sistemas de censura e seria difícil listar todos os que o fazem, ou apenas descobri-los. Talvez sejam menos os que não fazem censura. Dos países mais fortes economicamente, os EUA, o Canadá, o Reino Unido, a Alemanha e provavelmente a maioria dos países europeus, censura filmes de uma forma ou de outra. O Japão, por exemplo, não obsta particularmente ao retratar de violência intensa mas não deixa passar pêlos púbicos, nem sequer em anime.

Para lá da censura normal, o RU tem legislação referente a menores que automaticamente exclui a mera simulação de actos sexuais com actores que não provem ter 18 anos («Kids» teve grandes problemas burocráticos). A censura é tão minuciosa que o filme é avaliado para a exibição no cinema e novamente para vídeo. Havendo edição pan and scan convencional e edição widescreen, há nova submissão ao BBFC (British Board of Film Classification, mas outrora o 'C' era de "Censors" mesmo). É uma censura iminentemente baseada num regime conservador e moralista.

O sistema classificativo norte-americano também se baseia nos valores morais, dos bons costumes, no senso comum, etc... Mas há que notar que a censura propriamente dita é ditada fundamentalmente por razões económicas. Os estúdios cortam os filmes porque querem. Os estúdios classificam os filmes - e pagam a classificação - porque querem. Se quiserem podem lançar o filme "unrated" (sem classificação). Tudo depende de uma série de factores, mas o mercado funciona de tal forma que muitas salas e clubes de vídeo (como é o caso do maior de todos, a Blockbuster Video, que recentemente chegou a Portugal) se recusam a distribuir filmes "para adultos", com a classificação NC-17 ou sem classificação. O MPAA (Motion Picture Association of America) sugere alguns cortes para se obter um R (Restricted), e o estúdio "tem de aceitar" porque precisa de garantir a margem de lucro, o que implica exibir o filme em todas as salas possíveis, para o público mais vasto possível.

(Como curiosidade refira-se que «Crash» foi lançado nos EUA sem cortes, com um ano de atraso, mas a Blockbuster teve poder suficiente para "forçar" a Fine Line a fazer uma versão R só para eles. Cronenberg terá dito que apenas se quis assegurar que os cortes fossem óbvios.)

O poder dos estúdios sobre os filmes leva muitos realizadores, com um projecto próprio que querem preservar, a ter de remontar os filmes contra a sua vontade. As regras do Director's Guild permitem que estes registem o seu "Director's Cut" num certo prazo. Se por um lado se aceita o prisma de quem põe dinheiro no projecto e quer ver lucros, por outro não se deseja ver um filme destituído de todas as características pessoais e artísticas e acomodado a padrões generalistas maximizados para agradar junto do grande público.

Como tudo é negócio, os mesmos estúdios que obrigam a remontagens e cortes, muito alegremente lançam mais tarde os tais "Director's Cut" - hoje em dia muito em voga -, chegando mesmo a publicitar que se mostra o filme "como o realizador o quis fazer". Só faltaria acabar dizendo "...e nós não deixámos". Muitas vezes abusa-se da expressão para vender, e em outros caso temos de nos questionar se, existindo cópia pan and scan e cópia widescreen, a primeira é aprovada pelo realizador. Para além de James Cameron, que controla ele próprio o processo de transferência vídeo, e roda os filmes já com dois enquadramentos diferentes em vista, que outros realizadores se pode dizer que aprovaram transferências com enquadramentos reduzidos?

A estas versões acrescente-se as mais cortadas e as menos cortadas, as versões europeias e as americanas (às vezes também as japonesas), as edições especiais, as remasterizadas, as em formato original (normalmente depois de já se ter gasto dinheiro nas outras, não vá alguém começar a habituar-se), as versões para TV e para cabo, as edições especiais para Laser Disc...

Em muitos países as emissoras de TV pegam no filme e decidem o que é próprio ou não para ser emitido, como se o filme se tratasse de um menu. Passa-se cena a cena, corta-se, substui-se som de palavras feias (normalmente "fuck"). O filme adapta-se ao meio, à hora, ao público e não ao contrário.

Os EUA não são os únicos fomentadores deste panorama. A culpa é do sistema, como fica sempre bem dizer. Facilita imenso existir um mercado poderoso e uma sociedade conservadora e moralmente cínica (para justificar a protecção das consciências com a censura). Isso há em toda a parte. Nós, devido ao período pré-1974, associamos censura a fascismo, e com isso temos estado livres de manipulações em filmes dentro do nosso território. De tempos em tempos um vento sopra...

A excepção no campo das manipulações internas em filmes será a SIC (que se esforça em ser o supra-sumo do mau-gosto; e quanto mais lhe batem mais ela gostam de quem não lhe bate), a menos recomendável fonte de "cinema" em Portugal, que corta o fim de todos os filmes que exibe. Mas talvez não se possa dizer que faz outra versão do filme. Outra manipulação, igualmente abjecta, era o disparate do Canal 1, anos atrás, interrompendo o filme imediatamente após os créditos iniciais e antes dos finais.

Claro, é fácil de comprar a cópia "errada" no meio de tantas versões, e mais fácil é quando exibidores e distribuidores não se importam com o que disponibilizam. Tivemos pelo menos um «Hellraiser2» censurado nas salas. E tivemos um «The Brood/A Ninhada» que passou duas vezes na RTP na mesma altura, sendo a primeira grosseiramente cortada no plano final. Um zapping rápido pareceu sugerir que «A Última Sedução» na SIC também fosse uma versão aligeirada (talvez para cabo).

Não podemos estar certos de ter visto a versão completa de um filme. Existem demasiadas versões. Não é seguro que quem os compre tenha consciência e insista que essa seja a versão "completa". Será que quem vende sabe?


Alguns filmes:
(Aqui vai assumir-se que o leitor viu os filmes em questão. Se não quiser saber demasiado sobre algum, passe ao seguinte ou ignore o texto a partir daqui.)

Brazil
A Universal Studios recusou-se a lançar o filme como Terry Gilliam o apresentou, e as discussões atrasaram o lançamento na América. Na Europa foi lançado com 142 min., e o facto de ser aclamado neste continente não foi suficiente para aceitar a versão original do realizador. O filme acabou por ser lançado nos EU com menos 10 minutos e com uma montagem totalmente diferente. Não foi só um "happy end" introduzido à força. Para chegar a esse "happy end" teve de se alterar todo o filme, transformando-o num "foi tudo um sonho". Tanto os sonhos de Sam Lowry como a negra realidade. Sam termina com Jill, no campo sob bonitas nuvens que sobraram de «The Never Ending Story», com que aliás também começa, e não com a bomba na loja de TVs. Diálogo que indiciasse a morte de Jill, como a frase de Kurtzman dizendo que era estranho ela ter morrido duas vezes, foi totalmente removido. Esta é a versão que a América ainda tem. Há uma terceira versão da autoria do presidente dos estúdios, mas também pode ficar com ela só para si.

Cinema Paraiso
Para que se veja que não é só na América que estas coisas sucedem. «Nuovo Cinema Paradiso» foi lançado em Itália com 155 min., mas como não teve grande sucesso de bilheteira foi retirado e re-lançado com 123 min. Acontece que (esta versão) ganhou o Prémio Especial do Júri em Cannes e o Oscar para o Melhor Filme Estrangeiro. Foi novamente lançado na versão de 155 min. e, quem diria, depois ainda lançaram o "Director's Cut", de 170 min., também referido em vídeo como "edição especial" ou "integral". O que difere? Demasiado. Passando à frente da versão de 155 min., que se desconhece, constatamos que temos dois filmes completamente diferente. Quase 50 minutos tinham de fazer diferença.

A versão curta conta a história do miúdo Toto, a paixão pelo cinema, e a sua influência na aldeia. Isto incluido num flashback, terminando com o funeral de Alfredo. O DC inclui principalmente cenas no presente. Salvatore procura Elena, a paixão perdida da adolescência (focada muito ao de leve na versão curta), que está casada e tem uma filha. Explica-se porque é que se desencontraram e seguiram caminhos diferentes; por culpa de Alfredo. Consumam a relação e separam-se. Prossegue para o plano final da montagem dos "beijos cortados".

A actriz que faz de Elena em adulta, Brigitte Fossey, nem sequer aparece na versão de 123 min. A história é agora mais de um amor frustrado, e questiona-se o valor da realização pessoal e artística perante o "amor eterno" - Alfredo, agora um personagem com quem é fácil antipatizar, fez tudo para que Toto deixasse a aldeia para "ser alguém", e este tornou-se um realizador de sucesso, mas frustrado, conhecendo muitas mulheres, mas suspirando pela que não pode ter.

Pergunta-se qual a legitimidade de apor a lista de prémios na "versão integral" (ainda que se prefira esta de longe).

Era Uma Vez na América
Talvez bata recordes: 90 minutos cortados para os States. De quase quatro horas passou a 139 minutos. Alterou-se a estrutura dos flashbacks e tornou-se um dos mais incongruentes filmes de sempre, segundo se diz, porque evidentemente não se conhece a versão (nem se quer conhecer). Há talvez não muito tempo recuperou-se o filme, mas ainda assim faltam cenas que nós na Europa sempre tivemos, maxime a violação de Elizabeth McGovern por De Niro.

Léon
Basicamente teve duas versões, uma atrás da outra. Tudo se resumiu a abrandar o modo como se retratava a relação entre o assassino e a lolita, para aparentemente não chocar o público americano. Quando «Léon» viu o seu "Director's Cut", os franceses perguntaram porque raio não se lançou logo a versão original na Europa. Basicamente, com as suas qualidades, Besson faz filmes franceses "à americana". Não podia deixar de ter um DC. Desconhece-se neste momento detalhes sobre as versões mas é risível que a RTP, na versão que emitiu, qualquer que tenha sido (de certeza que eles também não sabem), tenha permitido contrariar a ideia do DC introduzindo alguns "gosto muito de ti" por "amo-te". Será que quem traduziu estava a ver o filme?

5/8/97

P.S.: Consultando a Internet Movie Database, podemos agora constatar que ainda não vimos em Portugal o DC de «Léon». Eis o que se inclui nessa versão, conhecida como «Léon: Version Integrale», com mais 26 minutos e estreada a 26/6/96 nas salas francesas:

- Mathilda pede a Léon para terem sexo e este recusa;
- Léon explica porque teve de sair de Itália com 19 anos;
- Os dois a dormem juntos, na cama;
- Mathilda ameaça matar-se, jogando roleta russa, se Léon a não ensinar a ser uma assassina;
- Os dois atacam um traficante de droga e queimam-lhe todo o "material";
- Mais missões de treino com Mathilda a aprender a profissão de assassina.

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