Fantasporto 2004 - 24º Festival Internacional de Cinema do Porto

Cartaz Fantasporto 2004 I - Preliminares

II – Filmes
Acacia, The Cooler, H, I'll See You in My Dreams,
Innocence, Perfect Strangers, Palabras Encadenadas,
Robot Stories, A Tale of Two Sisters, Tube

III - Palmarés

I – Preliminares

Nas vésperas do seu 25º aniversário, o Fantasporto trouxe uma programação onde o género fantástico continua a resistir, ao lado de uma secção paralela dedicada ao cinema de autor e independente, que quase se revela um festival aparte . Contribuirá esta bipolarização para um apelo a dois públicos inteiramente distintos? A maioria da audiência procura com igual interesse as duas secções competitivas? Seria interessante ter acesso aos dados estatísticos. O que é certo é que o público que aflui ao Rivoli é bastante diversificado; há o mais cinéfilo e há o mais casual, que, no extremo do espectro, é constituído por indivíduos que detém duas células cerebrais: uma é usada para coçar a cabeça, a outra permite ao polegar digitar mensagens de SMS no seu telemóvel último modelo com uma luz colorida irritante (disponível nos tons laranja-irritante e azul-bebé-irritante). Estavam em todas as sessões, aparentemente. Ou então perseguem-nos.

A programação oficial decorreu entre 20 e 28 de Fevereiro e este ano apenas nos foi possível frequentar o festival no último fim de semana, visionando meros nove filmes (uma vergonha, principalmente comparado com as 43 projecções no último festival onde estivemos presentes), incluindo a sessão de encerramento e o grande prémio que, para grande surpresa, haveria de ser um dos nossos favoritos de Sitges 2003, «Janghwa, Hongryeon» ou «A Tale of Two Sisters». Na verdade, com um timing notável, passe a modéstia premonitória, dois dias antes era publicado o texto online, em Cinedie Ásia, ilustrado com uma foto generosa da actriz Im Su-jeong (a mesma colocada mais abaixo, em versão menos generosa), a qual seria igualmente premiada. Apostaria que o filme de Kim Ji-wun ganharia a Secção Orient Express, face a aparente fraca concorrência, mas não o Grande Prémio. É irónico que «Acacia», um filme notoriamente inferior, viesse a ganhar essa secção, com «A Tale of Two Sisters» a receber o Prémio Especial do Júri. Seria algo bizarro se o Grande Prémio fosse atribuído a outro filme e a obra de Kim ficasse, assim, rebaixada sob «Acacia».

Rivoli Cartazes Hall
O Teatro Rivoli, sede do Fantasporto. Ao centro, a típica foto-dos-cartazes-na-entrada. Não apreciamos o poster de «Acacia»; há um mais bonito abaixo e outro no comentário Cinedie Ásia.

A projecção este ano não esteve muito má. O som, em particular, pareceu bastante bem, a dar um bom contributo à atmosfera de filmes de horror, como os acima referidos. Em alguns casos, como não podia deixar de ser (será que não?), o foco estava algo afastado do seu ponto óptimo, sendo o caso mais notório a projecção de «H».

II - Filmes

Anunciado como um “hard-gore triller” na veia de «Tell Me Something»,«H» (2002), de Lee Jong-hyuk, segue os “feitos” de um psicopata assassino que parece conseguir continuar o seu trabalho mesmo preso e prestes a ser executado. Nada de novo aqui, com inspiração, muito denunciada, nos locais do costume: o moralismo de «Se7en»; o psicopata preso que os detectives procuram para tentar resolver os crimes, similar a «Silêncio do Inocentes», e até uma certa referência a «Cure», de Kurosawa Kiyoshi. O pior em «H» são as personagens que nunca chegam a ser realmente desenvolvidas. Yeom Jung-a, excelente em «A Tale of Two Sisters», limita-se a manter um ar sério e deprimido e o psicopata (Cho Seung-wu) esforça-se demasiado por estar sempre em controle, enquanto cita Nietszche.

H Acacia Tube
Três títulos em competição na nova secção Orient Express: «H», «Acacia» e «Tube».

«Acacia» é um filme de horror que não desbrava terreno novo, mas está bem filmado e montado. Exceptuando, talvez, o abuso com que se entrecortam as revelações no final, alternando entre o tempo passado e o presente. Há um mistério e mortes associadas à presença de uma acácia ressequida. Tudo começa quando um casal que não tem filhos decide adoptar um precoce imitador de Edvard Munch de apenas seis anos, que acredita que a sua verdadeira mãe está plantada no quintal. Quão assustadora pode ser uma árvore? Bom, não muito, mas o filme tem os seus momentos, ampliados convenientemente na banda sonora. Se perdeu este filme, não há razão para ficar muito aborrecido.

Robot Stories
Mudança radical de registo com «Tube», de Baek Un-hak. Se fosse um filme de Hollywood (bom, não é um filme de Hollywood?), teria sido vendido como “Speed no metropolitano” aos executivos que deram a luz verde para a produção. E como é grande a rede do metropolitano de Seoul; os comboios andam a 120 ou 140 Km/h cruzam-se, mudam de linha, durante duas horas de filme. E não param. Bom, têm de parar, mais cedo ou mais tarde (no final do filme, como é óbvio). A história tem pouco que se lhe diga: mau mete bomba num comboio e faz chantagem; o polícia rebelde é o único que pode salvar um dia que piora quando a menina que se perde de amores por ele também entra a bordo. Tecnicamente não está nada mau, mas é preciso que se fique satisfeito com tiros, explosões e improbabilidades, como o herói saltar várias vezes para dentro e fora de um comboio a cento e tal à hora e continuar pronto para mais uma cena de acção.

A sexta-feira iria terminar com a única entrada não asiática do nosso programa, «Robot Stories», mas eis que, partindo para a sessão na total e completa ignorância sobre a natureza desta obra, deparamos com um Asian-American film. Greg Pak escreve e realiza quatro histórias subordinadas ao tema que lhe dá o título. Na realidade, o termo “robot” será algo redutor, pois o filme não se debruça apenas sobre autómatos: há uma história que assenta sobre a tecnologia cibernética e o conceito da consciência que sobrevive na Rede depois da morte física e outra em “action figures”. Com um orçamento limitado, Pak consegue elaborar um quarteto de histórias muito humanas, sem preocupações com a transmissão de uma mensagem. O sucesso da sua passagem por dezenas de festivais prender-se-á com a sua sensibilidade e sinceridade. Não é à toa que um dos prémios foi o “Special Juri Prize for Emotional Truth” no Florida Film Festival. (A 26 de Fevereiro o filme totalizava 29 prémios).

«Innocence» é um filme co-produzido pela Bélgica e Austrália, realizado pelo holandês Paul Cox. É um título já de 2000, apresentado na Secção Première e Panorama, precedendo a estreia em sala (em Gaia, apenas, como a maioria dos filmes distribuídos pela Cinema Novo). Face à profusão de romances adolescentes ligeiros, sabe bem poder assistir a uma história de amor na terceira idade, onde há a “ousadia”, inclusive, de focar o sexo. Verdadeira ousadia, diríamos, seria que a montagem que intercala momentos íntimos entre o casal enquanto jovem e septuagenário fosse mais natural e espontânea... Cox aborda o tema com seriedade, deixando espaço suficiente para o humor, que surge na medida certa.

Na sessão de encerramento, foi apresentado «The Cooler» ou «Má Sorte», que entretanto estreou comercialmente e onde é possível assistir a mais um bom desempenho de William H. Macy, secundado por Maria Bello. Mas os holofotes incidem mais sobre Alec Baldwyn, nomeado para um Oscar por este papel. É um filme que assenta na relação entre as suas personagens e as composições do elenco principal estão muito boas, de modo que desculpamos facilmente alguma fraqueza do texto.

A finalizar o último dia do festival diz a tradição – que continua a ser o que era, felizmente – que se projecta o filme vencedor. A sessão já estava programada, mesmo antes de saber que lá teria de ver pela terceira ou quarta vez o belíssimo «A Tale of Two Sisters», de Kim Ji-wun, sobre o qual já escrevi suficientemente. Também não será muito interessante perder algumas linhas para referir um certo desinteresse de parte da audiência, até porque relendo textos de anos anteriores fiquei com a impressão de me debruçar demasiado sobre aspectos negativos (mas que o indivíduo que tentou aplaudir depois da luta entre duas personagens é um imbecil, lá isso é).

Kim Ji-wun Im Su-jeong
Dois vencedores no Fantasporto 2004: Kim Ji-wun (fotografado em Sitges, por Pedro Oliveira), Melhor Realizador, e Im Su-jeong, Melhor Actriz (foto promocional «A Tale of Two Sisters»).
Antes do filme sul-coreano foi apresentada a melhor curta-metragem a concurso, o já célebre filme de zombies português «I'll See You in My Dreams», realizado pelo espanhol Miguel Ángel Vivas. Vimo-lo em Sitges, mas na altura não houve oportunidade para escrever sobre as curtas. O filme é uma homenagem assumida a alguns mestres do cinema de horror gore, algo que fica, desde logo, registado nos nomes de um trio de personagens masculinas: Dário (Argento), Sam (Raimi) e Lúcio (Fulci). A história arranca numa aldeia infestada por zombies e o herói, Lúcio, é um verdadeiro exterminador. Os efeitos de maquilhagem estão ao nível dos clássicos, mas confesso que esperava um registo com gore mais “in your face”. Sublinhe-se também que aqui não transpira nada de “low budget”: é um filme “a sério” e que se leva a sério, com bons valores de produção e competência na execução.

Apesar de não anotar falhas técnicas relevantes, há que referir que as projecções em Sitges dos dois filmes vencedores no Porto estavam melhor iluminadas; os corredores escuros do filme coreano não eram tão escuros e algumas das cenas mais movimentadas do filme português vislumbravam-se melhor.

No domingo, como também é tradição (e de louvar, novamente), apresentam-se sessões com os prémios principais, para quem não teve oportunidade de os ver no decurso do festival ou para quem tem pouco tempo disponível e prefere uma versão compacta do Fantasporto em modo Best Of. Aproveitou-se para ver dois filmes: o australiano «Perfect Strangers» (Prémio Melhor Actriz, Semana dos Realizadores) e o espanhol «Palabras Encadenadas» (Prémio Especial do Júri, Melhor Actor, co-vencedor do Melhor Argumento e prémio Méliès de Prata).

Aliados
The End. Av. dos Aliados by night.
«Perfect Strangers» parte de uma situação de engate levada longe demais: mar adentro, até uma ilha desconhecida e aparentemente desabitada. Rachael Blake interpreta Melanie, uma empregada de restaurante que, numa noite de copos, conhece um homem (Sam Neill) que a leva para casa. Só que a casa dele é num barco e Melanie acorda bem longe do bar onde bebeu um copo a mais. O filme em seguida opta por oscilações de registo, romance, thriller, comédia, humor negro... As variações não funcionam a 100% e, a chegar ao final, sente-se a falta de fôlego do argumento.

Apresentado pelo seu título inglês, «Killing Words», no programa e no catálogo, «Palabras Encadenadas», de Laura Mañá, arranca com as confissões de um serial killer numa cassete vídeo. Aparentemente, o respeitável senhor (durante o dia, claro) usa o registo das suas meditações pós-homicídio para torturar a próxima vítima, que se encontra amarrada e amordaçada. O título refere-se a um jogo de palavras em que uma das pessoas tem de dizer uma palavra que comece com o final da sílaba da palavra anterior. Imagine-se o divertimento que é seguir o original em castelhano e as traduções adaptadas para português e inglês. Bom, mas o filme em si acaba por decepcionar; suscita interesse no início, mas logo entra em ciclo a um nível absurdo, julgando ser possível surpreender a audiência com um afirmar e negar contínuo. 90 minutos acabam por parecer demasiado tempo, mas parece-nos que daria um episódio jeitoso de uma dessas séries de TV de mistério ou horror.

E pronto, para o ano há mais, entre 21 de Fevereiro a 7 de Março (com o programa oficial previsivelmente entre 26 e 5), altura em que o mais importante festival de cinema português comemora o seu 25º aniversário.

Fotos: Pedro Oliveira
(excepto "Aliados" e "Cartazes")

Sessão de Encerramento

M Sarmento, M Dorminsky
Mário Dorminsky, presidente do Fantasporto, ouve com satisfação o discurso do Ministro da Presidência.
A cerimónia que marcou o encerramento desta edição do Fantasporto foi apresentada por Mário Dorminsky e César Nóbrega. A novidade mais notória em relação aos eventos de anos anteriores foi a breve performance da cantora canadiana Ruthann Springle, que incluiu um tema da banda sonora do filme «See Grace Fly», mas o anúncio mais importante, para o público e para a organização, foram as garantias de financiamento para a 25ª edição do festival, dadas pelo Ministro da Presidência, Morais Sarmento.

Jeong Kang
Os representantes da embaixada da Coreia do Sul em Portugal - o vice-consul Jeong (à esquerda) e o adido cultural Kang -, naturalmente satisfeitos com o triunfo do cinema do seu país, através dos galardões atribuídos a «A Tale of Two Sisters» e «Acacia».

Passaram pelo palco do festival alguns dos vencedores presentes no Porto, como Julian Richards e Kevin Howarth, respectivamente realizador e actor principal de «The Last Horror Movie» (Prémio da Crítica), e Filipe Melo, produtor de «I'll See You in My Dreams». Houve também espaço para comentários por parte de representantes de duas distribuidoras nacionais, com filmes presentes no Fantasporto: a LNK e a New Age Entertainment. A primeira distribui «Cabin Fever», «A Casa dos 1000 Cadáveres/House of 1000 Corpses», «Massacre no Texas/The Texas Chainsaw Massacre», «800 Balas», «O Outro Lado da Cama/El Otro Lado de la Cama» e «Perfect Strangers»; a New Age detém os direitos de «Northfolk», «Dead End – Terror sem Fim» (já estreado), e «The Green Butchers».

F Melo
Filipe Melo, produtor da curta de zombies «I'll See You in My Dreams», um dos triunfadores no Fantasporto.
Os prémios principais foram distribuídos pela Dinamarca («The Green Butchers» levou três prémios), Espanha (seis prémios, a maioria para «Palabras Encadenadas») e Coreia do Sul (cinco prémios, incluindo o principal). A cinematografia sul-coreana saiu em grande desta edição, graças a «A Tale of Two Sisters», apesar dos outros três títulos apresentados na competição não constituírem boas propostas para convencer o espectador casual a dar alguma atenção à produção proveniente do território. A embaixada da Coreia do Sul em Portugal fez-se representar pelo vice-cônsul Jeong Je-seo e pelo adido cultural Kang Byung-goo, os quais subiram ao palco para receber os prémios atribuídos a «A Tale of Two Sisters» e «Acacia». Kang manifestou o desejo de que o Fantasporto de 2005 exiba mais filmes sul-coreanos, mas também que convide cineastas e actores para estarem presentes no festival. Com o esperado acréscimo orçamental, a afastar definitivamente (?) o fantasma da crise, tudo indica - e nós também o esperamos - que existam condições para que tal possa vir a materializar-se.

III – Palmarés

Secção Oficial Cinema Fantástico

Grande Prémio: «A Tale of Two Sisters», de Kim Ji-wun (Coreia do Sul)
Prémio Especial do Júri: «Palabras Encadenadas», de Laura Mañá (Espanha)
Menção Espacial para «La Fin de Notre Amour», de Heléne e Bruno Forzani (Bélgica)
Melhor Realização: Kim Ji-wun, «A Tale of Two Sisters»
Melhor Actor: Dario Grandinetti, «Palabras Encadenadas»
Melhor Actriz: Im Su-jeong, «A Tale of Two Sisters»
Melhor Argumento (ex-aequo): Fernando de Felipe & Jordi Galcerán («Palabras Encadenadas») e Hubert Selby Jr. & Nicholas Winding Refn («Fear X», Dinamarca)
Melhores Efeitos Visuais: Michael O'Brien e Wayne Toth, por «House of 1000 Corpses»
Melhor Curta-metragem: «I'll See You in My Dreams», Miguel Ángel Vivas (Portugal)

Semana dos Realizadores

Grande Prémio: «De Grønne Slagtere» [«The Green Butchers»], de Anders Thomas Jensen (Dinamarca)
Prémio Especial do Júri: «El Otro Lado de la Cama», e Emilio Martínez Lázaro (Espanha)
Melhor Realizador: Anders Thomas Jensen, «The Green Butchers»
Melhor Actor: Mads Mikkelsen, «The Green Butchers»
Melhor Actriz: Rachel Blake, «Perfect Strangers» (Nova Zelândia)
Melhor Argumento: David Serrano, «El Otro Lado de la Cama»

Secção Orient Express

Grande Prémio: «Acacia», de Park Ki-hyeong (Coreia do Sul)
Prémio Especial do Júri: «A Tale of Two Sisters», Kim Ji-wun

Prémios Méliès

Méliès d'Argent: «Palabras Encadenadas»
Méliès para Melhor Curta-metragem: «I'll See you in My Dreams», Miguel Ángel Vivas

Homenagem: Julio Fernandez, presidente da Filmax pelos 50 anos desta produtora espanhola.

Júri da Crítica: «The Last Horror Movie», de Julian Richards (Reino Unido)
Júri da Audiência/Prémio JN: «See Grace Fly», de Pete McCormack (Canadá)

1/04/04

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