O Preço da Violência

O politicamente correcto e o exacerbamento da análise intelectual profunda criaram uma separação, por vezes radical, entre duas categorizações das formas de representar a violência em obras cinematográficas. A violência é sempre má - menos se for infligida nos outros e ainda menos se for vista, encenada, num écran prateado. Mas se a violência for consistente com a premissa do filme, justificada pela caracterização de um personagem ou necessária para transmitir uma mensagem, já é aceitável ou menos má. Já não é "gratuita".

Ironicamente, os filmes aos quais mais facilmente se aponta o dedo, denunciando a gratuitidade da sua violência, foram feitos por meia dúzia de dólares, e muitos dos que vêm o salpicar de sangue nas paredes ser justificado social e criticamente gastaram o suficiente para produzir 20 ou 30 filmes portugueses nessa encenação.

Mas o que é afinal isso da violência gratuita cujo rótulo parece preocupar tanta gente, que a ele recorrem por tudo e por nada? Num filme de horror, em que o ponto de partida é um psicopata que - sabe-se lá porquê - desata a decapitar teenagers, a representação desses actos é gratuita? Se tal for apenas referido (o polícia olha o corpo na mesa da morgue, fora do enquadramento, e diz: "Bob, cortaram-lhe a cabeça!"), sempre que uma da 15 vítimas é morta, não haverá gratuitidade da mera descrição? E se se encher os tempos mortos com diálogos de extrema profundidade sócio-cultural, a violência torna-se mais aceitável, por estar diluída em conteúdo "intelectual"?

Os filmes mais extremos dividem as audiências. Filmes violentos como «Henry, Portrait of a Serial Killer» (1986), «C'Est Arrivez Prés de Chez Vous» (1992) ou «Braindead» (1992) são aceitáveis para muitos por motivos diversos. Um é retrato cru e realista de um assassino em série, colocando lado a lado actos cruéis e atrozes e a naturalidade e desvalorização do acto de matar por parte do autor; outro desenvolve um comentário social inteligente, relativo ao crescente voyeurismo e à cumplicidade do espectador com os actos vistos no écran; o último é uma simples e inocente comédia, sem cenas de sexo ou palavras feias, dirigida com habilidade e usando o extremo da violência para divertir e não para chocar.

Colocar ou não colocar o rótulo não nos afectará muito, enquanto espectadores de cinema, desde que tal não interfira na nossa liberdade de ver ou não ver qualquer filme, com ou sem violência, "gratuita" ou não. Mas por vezes temos de nos debater com a "opinião dominante" que nos tenta conduzir para o que é admissível e o que é condenável. Mas quem é que coloca o preço na violência? Felizmente, pode ser cada um de nós, da mesma forma que somos nós quem decide se compra ou não o produto. Povos mais infelizes, como o britânico, são, de facto, educados à força pela opinião dominante. No caso, os censores do British Board of Film Classification, que na apreciação dos exemplos supra referidos, deram o selo de aprovação ao filme belga e ao neozelandês mas rejeitaram a disponibilidade integral do americano. Não interessa referir os "motivos", porque se tenta limitar o humor neste texto (violência e humor raramente misturam bem), mas «Henry», apesar de classificado para 18 anos e de ter uma advertência expressa sobre o seu conteúdo ainda sofreu alguns cortes e mesmo remontagem de algumas cenas. Nos EUA, a apreciação foi diferente, e, apesar de ser um sistema mais pragmático de mera atribuição de classificações etárias, a implicação recaiu sobre «C'Est Arrivez Prés de Chez Vous» («Man Bites Dog», para os anglo-saxónicos), delapidado em duas cenas cruciais para a narrativa; uma violação e o homicídio a sangue frio de uma criança. Diz quem viu essa versão, que sendo as referidas cenas importantes pelo seu efeito-choque, a sua remoção facilita que o tom humorístico se sobreponha e que o espectador saia do filme a considerar que se esteve a "glamourizar" a violência, já que os actos criminosos não eram tão condenáveis como eram suposto ser. A remoção dessas cenas tornou, portanto, o filme mais "gratuito". Nos EUA há sempre a possibilidade de lançar uma cópia alternativa, "para adultos", e neste caso a cópia integral está marcada "NC-17" e a cópia censurada é "sem classificação". Tendo em conta que as imagens de «Saving Private Ryan» (1998) ou «Starship Troopers» (1997) são, individualmente, mais fortes e que a violência não é usada tão positivamente para transmitir uma "mensagem" como em «C'Est Arrivez Prés de Chez Vous» - e que ambos foram 'R' e '15', nos EUA e no RU, respectivamente - , isto dirá muito sobre as opinião e a análise na origem dos rótulos.

As classificações devem ter um efeito meramente informativo. Devemos preocupar-nos quando uma distribuidora portuguesa se parece preocupar demasiado em exibir «O Resgate do Soldado Ryan» para "maiores de 12 anos"? Qual o problema do "M/16"? O recurso terá surgido por se ter considerado que o filme é "adequado" para audiências com 12 ou mais anos ou (também) porque se começa a considerar que um filme com capacidade para atrair grandes audiências, terá muito maior sucesso comercial porque os pais acham que não devem levar os filhos a filmes para maiores de 16 anos? É que a preocupação meramente comercial pode levar a que as distribuidoras se "enganem" e exibam cópias previamente aligeiradas para outros mercados. Recusamo-nos a acreditar que algum dia venham a admitir que podem dar localmente umas tesouradas antes de enviarem o filme à comissão de classificação.

Felizmente, na altura em que se escreve o texto, já se aguarda a estreia de «Something About Mary». Nos EUA, o distribuidor - com aparente aval (como se fosse preciso) dos cineastas - considera remontar o filme para poder redistribuí-lo para uma audiência mais vasta, de adolescentes com mais de 12 anos. Na base do sucesso do filme (classificado 'R', uma classificação vulgar e aceitável, exigindo um acompanhante para menores de 17, o que pode incluir até recém-nascidos), está um humor corrosivo que se baseia numa certa escatologia e em humor referente a fluidos sexuais e imagens gráficas e dolorosas relacionadas com fechos de correr. Mas o que se pensa é apenas que se o filme fez muito dinheiro, pode ainda fazer mais removendo-se todo o conteúdo adulto e relançando-o, ao invés de lançar outro filme de temática infantil. Porque o sucesso deste e a "word-of-mouth" já asseguram a presença maciça do público mais jovem que facilmente será enganado em relação ao que vai ver. Se esta versão sair de facto, como tudo indica, só há o perigo de ser trazida para cá para o mercado vídeo. Por acidente, como sempre.

Voltando à necessidade de justificar o conteúdo do filme, é curioso ver como o conhecido crítico norte-americano Roger Ebert passa metade da crítica a «Dawn of the Dead» (1978), de George Romero, a justificar-se perante os seus leitores por gostar do filme, ao invés de falar mais sobre o filme em si.

[O filme] não é depravado como muitos comentadores consideraram. É sobre a depravação. Os zombies em «Dawn of the Dead» não são os depravados. Apenas agem de acordo com a sua natureza, e, com carne dependurada das suas mandíbulas, são isentos de culpa.

Claro, a depravação existe nas pessoas normais - "eles somos nós" - e o comentário social justifica tudo. Mas a justificação acima também é válida para o mais "gratuito" filme de canibais. Afinal está na natureza dos canibais canibalizar e dos homicidas psicopatas cortar corpos com motosseras. O que é gratuito então? Por cá, ainda recentemente se podiam ler críticas de escrita periclitante a «Perdita Durango» (1997). A exposição tem de ser muito cuidadosa, pensa-se, porque o leitor - principalmente aquele que não vai ver o filme (a maioria, já que foi retirado de Lisboa, depois de duas semanas de exibição) - começa por pensar "mas PORQUE é que este crítico gostou DESTE filme?".

A violência gratuita enquanto estigma não faz qualquer sentido, mas parece ser óbvio que o acto de Steven Seagal a partir braços dos inimigos num dos seus filmes de "porrada e vingança" é mais gratuito do que todo o «Braindead». Afinal é "força excessiva" (deveria imobilizar cuidadosamente o oponente, segundo parâmetros pré-definidos), e zombies têm mesmo que ser desmembrados violentamente (está em todos os manuais). De qualquer forma, a máxima mais importante a reter - talvez também por alguma patética necessidade de justificação - será que a violência é sempre má na vida real, mas não tem que ser valorada moralmente no écran de cinema; apenas classificada.

5/11/98

coluna
index